Dissonant Counterpoint – Johanna M. Beyer por Diana Policarpo
Lá em cima, tudo é verdade, não há por que duvidar – e por que duvidar do que se expõe à luz daquele branco? De tão afirmativo, assume um tom intimidatório. Trata-se da primeiríssima invenção da arte contemporânea, do que se designou por arte contemporânea: um branco necessariamente operativo, contextualizante – aquele que legitima. Aí, em todo o white cube, tudo o que se ouve é certeza. Isto não deve, não pode consolar. Pois que a certeza cega, mais do que esclarece: neste caso, ou talvez em todo o caso, demasiada luz fere.
Cá em baixo, nesta espécie de bunker, a falha não é polida. Afinal, ao contrário do que habitualmente se supõe, a contemporaneidade acontece na parte da sombra, numa dimensão subterrânea, onde toda a cratera é tão profunda como parece. Segundo Agamben, o contemporâneo é aquele que “recebe em pleno rosto o feixe de treva que provém do seu tempo”. Isto já o havia dito, de outro modo, Dostoiévski: só quem pertence ao subterrâneo se encontra capaz de ver para lá do belo e do sublime, o que há de treva no vaudeville. Por certo, já não no plano da literalidade, já não apenas um nível abaixo do mundo térreo. Eis que o subterrâneo se afigura como o lugar da revelação. Belo Campo – antiga adega do edifício, tornada espaço expositivo pela mão de Missika – reafirma a urgência desse tão aguardado regresso ao lugar originário da criação artística. Altamira, Lascaux, Chauvet. Bataille, antes de mais.
Interessa notar, de resto, que este regresso à “noite dos tempos” se faz no feminino: até à data, e talvez não inocentemente, só a voz dela, a mulher na caverna, a mulher da caverna – depois de Folly, Diana Policarpo. Se não chegasse, e nunca chega, Policarpo evoca Beyer, compositora germano-americana ultramodernista, absolutamente pioneira na experimentação da música eletrónica. Contudo, mulher imigrante e solteira algures na década de trinta – toda uma obra por escutar, por reconhecer. Dissonant Counterpoint assume a luta contra a estrutura de poder que o permitiu, contra o sistema “altamente androcêntrico e limitador” que ocultou Beyer – muito além do #metoo, acima de toda e qualquer hashtag.
A Galeria Francisco Fino, logo à esquerda depois da porta ao fundo, uma abertura no chão – de onde jorra a luz pós-apocalíptica desta intervenção – convida o visitante a descer: de início, uma antecâmara, o momento da passagem; já dentro, essa experiência tripartida, tão inteligentemente arquitetada, que decorre não apenas do gesto apropriacionista, mas também, e em primeiro lugar, de um certo sentido de justiça – declarado, sem reticência, na folha de sala. Policarpo honra Beyer por via de um dispositivo dialogante, com tanto de Policarpo quanto de Beyer, articulando som, texto e escultura (ainda que não necessariamente por esta ordem). Two Movements: Three Songs for Soprano and Clarinet e The Spheres (21’20’’) na primeira e na terceira, de um canto ao outro, desenham uma diagonal em cada sala. Three Songs for Soprano and Clarinet (8’10’’) na segunda, já poema, percorre a vermelho o fundo negro de um ecrã LED. From Leipzig to the Bronx: Letters from Beyer to Conwell, com spoken word de Beber, e Status Quo/Music of the Spheres: Opera Typescript (12’54’’) estão por todo o lado, em permanente tensão, em busca da catarse – aquela que se deve a Beyer (e a cada Beyer).
Dissonant Counterpoint traduz o seu interesse pela ressonância cósmica da eletricidade, pela música protominimalista, pela mais elementar forma de ruído. No entanto, está para lá de tudo isto. Trata-se aqui de um projeto maior, a declaração de um compromisso – à partida, de resgate – por parte de uma artista genuinamente fascinada pela obra e não menos pela vida desta compositora.
Importa acrescentar, por fim: mais ou menos a par desta realidade, com maior ou menor tolerância ao cheiro a enamel, há que experimentar a dita performance-instalação – quanto mais não seja, para conhecer o espaço que a acolhe.