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Do quotidiano para o extraordinário, com João Laia e a coleção de António Cachola

 

Quem é habitué das exposições da Galeria Municipal do Porto, projetada em 2001 pelo arquiteto José Manuel Soares, e toma a curadoria como ofício, não pode ter deixado de se surpreender com a abordagem de João Laia em 10000 ANOS DEPOIS ENTRE VÉNUS E MARTE, exposição patente de 9 de dezembro de 2017 a 18 de fevereiro de 2018. A coleção de António Cachola (que venceu em 2016 o Prémio A de colecionismo atribuído pela Fundación ARCO), com epicentro no Museu de Arte Contemporânea de Elvas (MACE), é o ponto de partida para a proposta do curador que reúne artistas de várias gerações e apresenta ainda as mais recentes aquisições do colecionador. A mostra acontece no âmbito das comemorações dos 10 anos do MACE e reflete o espírito da coleção, fundamentalmente de arte portuguesa produzida após os anos de 1980 e que é comummente apelidada de “coleção da Liberdade”.

Mas o que nos surpreende no dispositivo de João Laia é a forma como interpelou o espaço construído, tirando partido das grandes vidraças, dos dois pisos disponíveis e criando um percurso exploratório dos autores, desafiando os públicos a interagir com os objetos, não negando o exercício retórico que, por um lado, a arte contemporânea impõe mas, ao mesmo tempo, libertando a tensão contemplativa através do equilíbrio de propostas e dos estímulos sensoriais e emocionais das mesmas.

À relação espacial entre as obras de Joana Vasconcelos, João Tabarra, Von Calhau!, Carla Felipe, Pedro Neves Marques, Ana Manso, Musa Paradisíaca, Catarina Dias, Gil Heitor Cortesão, Diogo Evangelista, João Maria Gusmão e Pedro Paiva, Marta Soares, Mariana Silva, Nuno da Luz, António Júlio Duarte, Joana Escoval, João Queiroz, Francisco Tropa, Vasco Araújo, Diana Policarpo e Luís Lázaro Matos (Piso 0); Pedro Barateiro, Mauro Cerqueira, Mariana Caló e Francisco Queimadela, Ana Santos, Andreia Santana, André Romão, Rita Ferreira, Claire de Santa Coloma, Filipa César e Gabriel Abrantes (Piso 1), o curador (que recupera, para título da exposição o álbum homónimo lançado em 1978 por José Cid) soma uma atmosfera entre o sonho, a alucinação e a imaginação utópica das formas simples, que intensifica nas decisões de iluminação e nos contágios sonoros que permite entre as várias instalações e vídeo-instalações que dominam imageticamente a galeria.

Diz-nos João Laia, no texto introdutório, que se trata de uma “proposta especulativa” e que “as obras apresentadas analisam diferentes domínios do quotidiano” questionando as nossas relações com o real e a interpretação do mesmo. A especulação socrática é, aliás, a melhor estratégia de mediação entre o exposto e os públicos que são obrigados a apurar sensibilidades e a eliminar pré-conceitos estético-artísticos no contato com obras tão inquietantes como os Tesouros Submersos do Antigo Egipto (2008), de Francisco Tropa (n.1968) ou a Composição sobre tela (2017) de Claire de Santa Coloma (n.1983) com as quais fazemos a viagem e nos surpreendemos com a delicadeza e a perícia na manipulação da matéria e na criação do belo que indaga o convencional.

Dentro dos destaques, também as presenças de João Maria Gusmão e Pedro Paiva, coletivo sobre o qual escrevi logo em 2009 aquando da participação destes na 53ª Bienal de Veneza, e que aqui nos apresenta fotografia e vídeo, respetivamente com A Mola Paleolítica e A Coluna de Colombo, dentro do universo experimental e quotidiano que a dada altura nos remete para a máxima de René Magritte (1898-1967), “Do quotidiano para o extraordinário”, com recurso às tecnologias do tempo de hoje e à singularidade das pequenas metáforas.

Interessa também destacar Vasco Araújo (n.1975), artista muitíssimo interessante cuja obra, multidisciplinar é uma reflexão séria e apolítica sobre o colonialismo e pós-colonialismo português. Ainda as presenças dos coletivos Musa Paradisíaca e Von Calhau!, com trabalho relevante na área da performance e que se instalam aqui, ambos, explorando as potencialidades dos materiais e combinando o natural com o artificial ao serviço da prática artística. A presença discreta de Filipa César (n.1975) é também indicador do percurso de extrema coerência intelectual e plástica que a artista tem vindo a desenvolver e, por fim, referência à Cama Valium (1998) de Joana Vasconcelos (n.1971), que terá sido um dos seus primeiros trabalhos, mas onde já vemos a repetição dos objetos do quotidiano na criação de novas formas e, sobretudo, de mensagens sobre os universos feminino, tradicional e quotidiano.

Em suma, quem não teve oportunidade de experienciar esta intrincada, ousada e inteligente curadoria de João Laia, não deve deixar de estar atento aos novos passos da coleção de António Cachola que está a ser capaz de criar mapa, de ditar tendências e, sobretudo, de suportar artistas, incentivando-os a não desistir de perseguir o caminho da vanguarda.

Helena Mendes Pereira (n.1985) é curadora e investigadora em práticas artísticas e culturais contemporâneas. Amiúde, aventura-se pela dramaturgia e colabora, como produtora, em projetos ligados à música e ao teatro, onde tem muitas das suas raízes profissionais. É licenciada em História da Arte (FLUP); frequentou a especialização em Museologia (FLUP), a pós-graduação em Gestão das Artes (UCP); é mestre em Comunicação, Arte e Cultura (ICS-UMinho) e doutoranda em Ciências da Comunicação, com uma tese sobre Mercado da Arte no pós 25 de Abril de 1974. Atualmente, é chief curator da shairart e professora de Arte Contemporânea, mantendo uma colaboração efetiva, em vários projetos de curadoria e de educação e mediação cultural, com a Fundação Bienal de Arte de Cerveira, entidade com a qual deu os primeiros passos em 2007.

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