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Γεωγραφίες na arte

A geografia tem sido uma representação implícita e constante na arte e, se quisermos, na história da arte. Como ciência objetiva, ou que se pugna por isso, a geografia mede os aspetos físicos – espacial e temporal – dos lugares. Acontece que esses lugares estão afetos a fenómenos para-físicos, que vão para lá daqueles, como sejam os de intervenção e ação humanos. E, neste contexto, a disciplina pressupõe dois vetores fundamentais: o das coisas quantificáveis, físicas, da meteorologia, da topografia, do ambiente e; o das vagamente quantificáveis como a geografia humana.

No entanto, há toda outra dimensão para-física que não é necessariamente contemplada pela geografia humana e que é a das suas produções imateriais. Nisso se tem ocupado a história e as suas várias ramificações (ciência, arte, etc.), ou ramos paralelos, tangentes ou perpendiculares a ela como a antropologia ou a etnologia.

No século XX, por iniciativa dos historiadores de arte, a geografia lançou uma nova linha de inquérito à história da arte, propondo o estudo das obras de acordo com o seu posicionamento geográfico e as especificidades do lugar em que foram concebidas. E o termo lugar é chave nesta discussão. Todavia, há que sublinhar a necessidade de ultrapassar toda e qualquer pretensão ideológica que se possa intrometer no estudo cabal de qualquer objeto. Porque, lembre-se, a história da Kunstgeographie, da geografia da arte, não pode deixar de ser lida com o interesse inicial de cunho nacionalista e étnico e a sua metodologia carece de algumas luzes. De condão vincadamente germânico, de apropriação nazi, a Kunstgeographie sonegou uma visão paralela lançada por Kubler, mais próxima da geografia humana, que entende a cartografia e as massas humanas como entidades mais líquidas do que estáticas, cambiantes por ação do tempo, e que cujas produções artísticas devem ser lidas de acordo com estes critérios.

Surge, pois, a seguinte questão: como pode a geografia acrescentar novas bases e visões ao objeto de arte e à história da arte? Alternativamente, como pode a arte relançar um outro olhar sobre a geografia? À primeira questão tenta Kaufmann atender, reformulando muito do que aqui tem sido descortinado numa única expressão que procura amenizar o melhor da Kunstgeographie e os ensinamentos de Kubler – uma geo-história da arte. À segunda o melhor será atender-se de modo ensaístico, inconclusivo, através da obra de arte. A arte oferece – ou pode, falando num registo propositivo – uma nova visão não só sobre os fenómenos físicos, mas também humanos contemplados pelo estudo da geografia. Ou seja, pode ser outra ferramenta de medição de certas geografias, apta, portanto, para detetar, como Thomas da Costa Kaufmann escreveu, “o espírito de um lugar” para lá da sua matriz meramente descritiva ou analítica.

Clinamen, de Francisco Pinheiro, parte precisamente de conceitos físicos para estudar a paisagem e o território, numa exposição densa e complexa que vai muito para lá da simples evidência. Da mesma forma que o território pode ser lido mediante um palimpsesto interminável, de camadas de tempo e transformações que densificam e acumulam signos e significados infindáveis, também esta exposição se desdobra em múltiplas interpretações atinentes à geografia, à arte, à produção humana, à escala dos museus, ao físico e ao digital, à paisagem interior mental, à paisagem de grande escala, delimitada, de entornos nacionais e políticos, culturais, sociais e económicos.

O termo clinamen tem raízes gregas e foi cunhado por Lucrécio. Contudo, a designação remete para os ensinamentos epicuristas que estabelecia o cosmos na sua dimensão atómica. Da massa inicial uma série de desvios produziram-se e assim surgiu a diversidade na natureza. Clinamen define esse desvio e densifica a doutrina de Epicuro que, aliás, e de acordo com Karl Jaspers e a sua teoria da Idade Axial, alinha-se às filosofias arcaicas orientais da dança perpétua dos átomos nas quais o mundo e a harmonia encontram fundamento.

A primeira parte da exposição espelha justamente a elementaridade destes ensinamentos que não obstante a cientificidade assombrosa e remota de Epicuro, sinaliza também um entendimento cosmológico das coisas do mundo. Meteorito é uma peça cuja leitura óbvia nos situa na mineração. Mas algo de imanente nos alerta para um objeto estranho, deslocado, desviado de um suposto lugar que não o da galeria e que encerra uma plasticidade peculiar, sem estar desprovida de vida. As pregas do objeto concebem um saco de cimento que foi deixado ao tempo para fazer presa e operar transformações ao ponto de o revestir com musgo e outras superfícies epidérmicas naquela massa compacta. O jardim de Epicuro é desiderato de uma paisagem mental interior atomizada. As várias peças da instalação dão pistas para uma construção abstrata, feita de várias imagens. Na verdade, as componentes da instalação foram recolhidas do Parque Florestal de Monsanto, mas a composição do artista parece sublinhar não tanto o elemento vegetal, mas antes o mineral ou a desidratação que se sucede à morte e que solidifica, fossiliza, as formas outrora vivas: folhas secas, caules, e até mesmo cortes de figueira-da-Índia.

A segunda parte da exposição obriga-nos a uma caminhada peripatética pela instalação Dragão branco. De certo modo, é a obra que congrega todas as matérias que têm vindo a ser referidas. Uma harmónica serpenteante desenvolve-se ao longo da sala, formando espaços, contornando a pequena sala, contorcendo-se nela. Impressas, imagens de satélite estabelecem um paralelismo imediato com uma forma de ver e entender os territórios cada vez mais presentes: ver de cima, à distância, a imensidão geográfica, terrestre, visionada segundo um ponto de vista supraceleste, como um pássaro, como um deus. Aqui, Pinheiro introduz o princípio da aparente realidade próxima que a tecnologia possibilitou, mas que é em tudo desconectada de uma mediação do corpo no espaço, do organismo sensitivo que contempla a paisagem, o território, e dela extrai conhecimento de acordo com a posição natural, biológica, do sujeito no mundo. A comodidade tecnológica desprende-nos do peso e do trabalho das paisagens transformadas: trata-se de um jogo de formas meramente plástico, de uma terra sem história nem símbolos.

De cima, como entes flutuantes, percebemos os locais tratados: minas – sítios de trabalho árduo e áspero, em que a terra se transforma violentamente em prol do muito desejado minério. Sobrepostas, imagens de artefactos diversos adicionam novas camadas de entendimento. Continuando o trabalho de recolha das peças anteriores, o artista procura agora imagens de objetos presentes na Coleção Calouste Gulbenkian que se reportem aos locais-nação exibidos (Arizona, Moçambique e Iraque). Isto estabelece um discurso que vai novamente ao encontro do tema proximidade-distância. Adicionalmente, o que a obra nos faz lembrar é que os museus têm geografias que vão para lá das suas paredes e uma escala assente numa cartografia incerta, imprecisa, mercê das peças e obras que comportam, de origens e proveniências globais, de artistas e artesãos de vários cantos do planeta. Aqueles são objetos revestidos de um tempo e de um espaço, trabalhados pelas mãos de um corpo terrestre, mãos essas que tocam a terra, trabalham-na e fazem dela riquezas culturais e artísticas incomensuráveis.

De um modo geral, Clinamen é uma exposição radicante na lógica de prefixação geo- que nos obriga a olhar para os conceitos de paisagem, cartografia e estados-nação, sempre numa visão a várias escalas (microscópicas e macroscópicas). Mas mais que isso é a possibilidade de um cruzamento entre disciplinas cujas metodologias radicalmente diferentes se estreitam em obras de arte.

Para ver até dia 30 de janeiro, na galeria Águas Livres 8.

José Rui Pardal Pina (n. 1988), mestre em arquitetura pelo I.S.T. em 2012. Em 2016 ingressou na Pós-graduação em Curadoria de Arte na FCSH-UNL e começou a colaborar na revista Umbigo. Curador do Diálogos (2018-), um projeto editorial que faz a ponte entre artistas e museus ou instituições culturais e científicas, não afetas à arte contemporânea.

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