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À conversa com o chef Vítor Hugo no Peixola

No Peixola, como o nome indica, a matéria-prima principal é o peixe, um peixe divinalmente cozinhado e que se reparte nos vários pratos que compõem o menu de degustação. É neste restaurante que Vítor Hugo faz magia. Um chef, como todos os chefs, tímido e reservado mas simultaneamente excêntrico. Chega com uma t-shirt dos Napalm Death, daquela altura em que para muitos o heavy metal e o trash metal simbolizavam a música que se queria ouvir numa catarse energética. Vítor Hugo vem de Linda a Velha, “que nos anos 90 foi o polo nacional do hardcore em Portugal e até os filhos dos meus amigos já têm bandas e escrevem ‘Linda-a-velha Hardcore’ nas blusas, e nas tatuagens”.

Elsa Garcia – Vítor…

Vítor Hugo – Ninguém me chama Vítor, é Vítor Hugo (risos).

EG – Sei que cozinhavas para a tua avó e lias livros de cozinha em francês.

VH – Fui praticamente criado por mulheres – não se nota, mas é verdade (risos) –, pelas minhas duas avós, tias e pela minha mãe na medida do possível. A minha avó era cozinheira de tasca, da açorda de tomate, dos peixinhos fritos (a comida que eu adoro). Então eu ia sempre com a minha avó para o restaurante e gostava de fazer comida em casa. Aos 11 anos peguei fogo à cozinha da minha mãe e levei um “tareão”.

EG – Como é que isso aconteceu?

VH – Estava a fazer bechamel, de pé em cima de um banco, e quando vou para pegar no tacho com um pano, este começou a arder, e como me estava a queimar atirei com o tacho para o chão de oleado que entrou em combustão espontânea. Ainda apaguei o fogo, mas quando a minha mãe chegou a casa, estava uma mancha preta gigante no meio do chão da cozinha. Ficou muito “feliz”.

EG – Começaste a cozinhar nessa altura?

VH – Só comecei a cozinhar bem depois dos 20 anos. O meu primeiro trabalho como cozinheiro foi com Jean Zaragoza, chef de cozinha da Estufa Real. Antes comecei como ajudante de cozinha no CCB (Centro Cultural de Belém) e quando entrei tive que tirar os piercings, que eram muitos (risos). Durante os primeiros seis meses o meu trabalho era: descascar duas sacas de cebola, duas de cenoura e uma saca de batata, fazer dois baldes de maionese com cebola picada, e dois baldes de maionese com tomate cassé (tomate sem pele e sem grainha e cortado fino). Em consequência disso sou o melhor gajo do mundo a fazer tomate cassé, a picar cebolas, e a descascar batatas e cenouras. Muito treino, muitas horas e só com uma folga por semana. Depois saí de lá mas acabei por voltar mais duas vezes: uma como chef e depois como chef executivo.

Taco de bacalhau

EG – Que grande promoção.

VH – Sim, todos os sítios por onde passo acabo sempre por voltar pelo menos mais uma vez para trabalhar. Só ainda não voltei ao Eleven, porque ainda não tive tempo. Saí do Eleven para assumir os dois restaurantes 100 maneiras, mas gosto muito do Koerper, um grande senhor. Ainda me lembro que quando estava no Eleven, e recuperámos a estrela Michelin, no dia seguinte despedi-me e o Joachim disse-me: “Mas….Shrek?” Ele chamava-me Shrek!

EG – Porquê?

VH – Ele dizia “Vítor Hugo eu tenho muitos cozinheiros, não me vou lembrar do teu nome. Posso chamar-te Shrek?” “O chef pode chamar-me o que quiser”.

EG – Voltando à estrela Michelin no Eleven, qual o motivo que deste a Joaquim Koerper para a tua saída?

VH – Respondi-lhe “Porque sim. Já ganhámos a estrela. Está feito. Está despachado.” Aí decidi ir para o 100 maneiras e quando falei com o Ljubomir nem me lembrava que tinha feito um risotto de champanhe com vieira corada e beurre noisette que ele tinha adorado e pedido para me conhecer.

EG – E como é que chegaste ao Peixola?

VH – Bem, na altura em que ainda estava no 100 Maneiras, comecei a fazer trabalhos de consultadoria para a, na altura, Champanharia do Cais, no Cais do Sodré, e depois prossegui com a consultadoria para a Espumantaria do Petisco no Castelo e no ano passado abrimos a Espumantaria do Mar no Palácio do Chiado. Foi então que decidi sair do 100 Maneiras.

EG – Porque é que decidiste sair?

VH – Porque estive lá três anos! Já chegava! Entretanto os sócios aqui da empresa souberam que eu ia sair e fizeram-me uma proposta para assumir a chefia ou gestão das três cozinhas do grupo. Às três cozinhas juntou-se o Peixola. Gostava do conceito mas faltavas-lhes frescura, controlo.

António Néu – Gostas de controlar tudo?

VH – Achas!!! Claro. Fico maluco se não controlo tudo, desde as doses às contas.

EG – Vamos lá perceber o teu percurso até chegares aqui.

VH – O primeiro que chefiei foi o Armazém F, depois fui chefiar a casa México, na rua Dom Carlos I, sem dúvida o melhor restaurante mexicano de Lisboa. Depois disso voltei novamente para o Armazém F, já como chef dos dois espaços, depois para o CCB, como chef de banquetes. Em seguida fui para a Justa Nobre nas Torres de Lisboa (boa casa, boa escola, bom tudo) e depois fiz a inauguração do Rio’s em Oeiras. Entretanto voltei ao Kais e ao CCB. Agora vamos fazer uma pausa porque chegou o fondant.

EG Fondant de quê?

VH – De caramelo!

EG – Tão bom. Deve ser a minha sobremesa preferida.

Já agora, o gelado também é feito na casa. Após quatro anos no CCB, tirei uma “licença sabática”. Estava farto de lá estar e saí com algum dinheiro. Foi na altura da crise 2012/2013. Passados oito meses decidi voltar a trabalhar e o Joachim Koerper ligou-me para ir a uma entrevista. Queria ir para o Eleven, aprender mais e o Joachim disse-me: “pronto então vais trabalhar muito! Quando queres começar?” “Agora?” “Hoje não pode ser porque eu quero estar na cozinha para deixar tudo pronto para ti. Amanhã às 8h da manhã.” E assim foi, passei alguns meses a trabalhar todos os dias das 9h à 1h da manhã. Só assim é que se recupera uma estrela Michelin. De outra forma não é possível.

EG – Nunca fizeste um curso de cozinha?

VH – Não, mas passei 20 anos a cozinhar.

EG – Autodidata. E este menu de degustação. Como é que chegaste ao conceito?

VH – É fácil pegar no conceito porque é direcionado para o peixe e eu prefiro mil vezes comer peixe, e mil vezes cozinhar peixe. Acho muito mais elegante. Gosto do toque e o peixe quando está fresquíssimo cheira a água, tem cheiro de mar e sabe a mar. Invoca-te uma série de memórias, o mar, o iodo, a rocha, e com uma garfada vais lá ter. O que se gosta na comida não é só o sabor mas sobretudo a memória que ela nos traz, e no peixe: a frescura, o lascar, a delicadeza, a elegância. Para fazer o menu peguei em várias coisas, por exemplo à mousse de peixe manteiga acrescentei-lhe um molho que aprendi a fazer com a mãe do Ljubomir.

EG – Portanto no fundo, a tua cozinha é uma fusão de várias situações que viveste.

VH – A César o que é de César e à mãe do Ljubomir o que é da mãe do Ljubomir! Basicamente é isso. Ninguém inventa nada, nós fazemos casamentos, uns mais bem sucedidos que outros. Portanto temos a mousse que é uma inspiração de leste. Depois o carpaccio de Vieiras que é muito mais doce, mais adocicado mas que eu equilibro com pó de azeitona, avelã e óleo de trufa.

EG – Depois o tártaro de choco que quase me fez chorar.

VH – Pois eu gosto de sentir a presença do sabor! Se tem maionese de wasabi eu tenho que a sentir, não pode ter só um ligeiro perfume.

Tártaro de choco

EG – E depois os detalhes. Utilizas flores comestíveis em quase todos os pratos!

VH – Sim. Algumas que gosto mais do que outras. Gosto particularmente de amores perfeitos. Talvez pelo facto de ser um romântico incurável. Gosto muito de amores perfeitos e de rosas, mas são flores que murcham muito rapidamente e acabo por ir para os cravos chineses.

EG – O que gostas mesmo é de aliar a cozinha contemporânea à portuguesa.

VH – Sim. Daí que mesmo a sopa de peixe que vocês provaram hoje, para mim tem que ser mesmo uma sopa à antiga, cheia de sabor, cheia de peixe, e consistente ao ponto da colher ficar lá espetada, firme e hirta durante três dias. E depois junta-se uma série de especiarias. Faço uma mistura de 27 especiarias minhas.

EG – E por fim o fondant!!!

VH – O fondant é um clássico, a única coisa que mudei foi o facto de fazermos o nosso próprio gelado. Dá mais trabalho, mas vale a pena. Quando fiz o pudim de castanha para o 100 Maneiras, fi-lo com gelado de lúcia lima. Porquê? Porque a minha avó fazia a castanha assada com chá de lúcia lima. É uma combinação incrível, o sabor da lúcia lima fresquinho, impecável, e o pudim… Volto sempre às receitas da minha avó.

Começou no jornalismo e ao longo dos anos tem feito vários cursos de arte contemporânea, entre os quais Temas da História da Arte do Século XX (Fundação Serralves), workshop de Curadoria na Faculdade de Belas Artes de Lisboa, Estética (Ar.Co) e História da Fotografia na mesma Instituição e uma Pós-Graduação em Curadoria na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. É membro fundador e diretora da revista Umbigo, criada em 2002, com a qual desenvolveu vários projetos curatoriais, entre eles a exposição Entre Limite e a Audácia de Miguel Palma na galeria Fábulas, The Difference de Andrea Splisgar no Palácio de Santa Catarina, a exposição Pieces and Parts na Plataforma Revólver, Lisboa, Pierre Barbrel – Dissociation no Espaço Camões da Sá da Costa, Robe de contact (lys) do artista Jean François-Krebs na Galeria Sá da Costa. Em 2023 fez a curadoria das exposições Unwinding de Theodore Ereira-Guyer e Sam Llewellyn-Jones na Galeria Sá da Costa e A Face is a Mask... de Pedro Valdez Cardoso na Brotéria. Foi júri e curadora da Exposição de Joalharia Contemporânea On the Other Hand, comemorativa do 5º aniversário da PIN (Associação Portuguesa de Joalharia Contemporânea), na Galeria Reverso (Lisboa), Galeria Adorna Corações (Porto) e no Simpósio Gray Area na Galeria Medellein (Cidade do México). Em 2018 foi júri do prémio ENSA Arte em Luanda. Também para a revista Umbigo coordenou a edição do livro Coordenadas do Corpo na Arte Contemporânea, uma coleção que reúne um ensaio de Bárbara Coutinho e diversos trabalhos artísticos, muitos deles desenvolvidos propositadamente para o livro, num conjunto de trabalhos que representam uma pequena amostra das preocupações filosóficas e estéticas de um grupo de artistas. Em 2018 juntamente com António Néu (diretor de arte da revista Umbigo) criou a Plataforma UmbigoLAB, uma rede de networking para artistas que promove a sinergia entre estes e os agentes do meio (curadores, diretores de museus, galeristas, colecionadores e instituições).

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