Noiserv à conversa com Raquel André
Raquel André é uma artista portuguesa com formação em teatro. Atualmente assume-se também como colecionadora de amantes e de colecionadores. A atividade de colecionadora sempre esteve latente no trabalho da artista desde bem cedo, mas foi durante a longa estadia no Brasil que a consolidou e lhe deu forma artística.
Noiserv é o projeto musical de David Santos. Desde 2005 tem produzido músicas, EP’s e LP’s e é um dos mais reputados músicos portugueses da atualidade, tendo inclusive concebido a banda sonora do filme documental José&Pilar (2010). 00:00:00:00 é o mais recente álbum, lançado em 2016.
Segue-se uma conversa, na qual Noiserv questiona Raquel André acerca dos seus recentes projetos Colecção de Coleccionadores e Colecção de Amantes, em estreia no Teatro Nacional D. Maria II, com banda sonora criada por Noiserv. A não perder, até dia 22 de novembro.
Noiserv – Eu só te conheci aos 30. Não sei nada do que veio para trás, a não ser ver-te na Lua Vermelha (telenovela da SIC) de vez em quando. E portanto, queria perceber como é que as coisas chegam a este sítio.
Raquel – Comecei a fazer teatro com 9 ou 10 anos num grupo de teatro amador, quando fui morar para Famões, na Amadora. Com 14 anos, a Malaposta estava à procura de jovens atores para fazer espetáculos como o Felizmente há luar de Luís de Sttau Monteiro para as outras escolas irem ver. Esse foi o momento em que fiz os primeiros espetáculos profissionais. Mais tarde descobri o Espaço Evoé que foi muito importante para mim. Na altura tinha que se pagar para estudar e como não tinha dinheiro propus-me trabalhar em troca das aulas e durante dois anos fiz limpeza à escola para pagar o curso. Foi a primeira vez que estudei realmente teatro, conheci linguagens mais performativas e pessoas de outras áreas como por exemplo da fotografia, música, artes plásticas, dança… Passados esses dois anos, tentei entrar no Conservatório de Teatro e consegui. Fiz os três anos da escola e quando acabei fui fazer a telenovela Lua Vermelha. Tinha medo de fazer televisão, mas foi uma experiência incrível. Quando acabou a telenovela fiz outra criação minha e entretanto surgiu a bolsa Inov-Art para ir para o Rio de Janeiro onde acabei por ficar durante seis anos e onde fiz inclusive um Mestrado. Em 2008 encontrei uma caixa com correspondência de uma família dos anos 70, 80 e 90 e em 2009 fiz o meu trabalho autoral com o Tiago Cadete.
Foi na altura da Lua Vermelha…
Foi um bocadinho antes, mesmo no final da escola. Levei as cartas para casa e de repente eram 650. Passei o verão inteiro a organizar as cartas.
Já trabalhavas com coleções antes?
Sim, as minhas três criações anteriores já estavam relacionadas com coleções.
Como é que passas dessas três coleções que são muito mais verdadeiras para uma que é ligeiramente mais falseada?
Falseada?
Tu própria dizes que é sobre falsear uma intimidade, não é? Podes falsear ou não, mas o princípio é muito mais falso do que o da Coleção de Colecionadores.
Quando fui fazer o mestrado no Rio de Janeiro e decidi como objeto de pesquisa o Colecionismo nas Artes Performativas pensei: até agora tenho trabalhado com coleções já existentes, como é que seria se eu criasse a minha própria? Eu nunca tive coleções, então comecei a pesquisar sobre o colecionismo e a estudar o que é realmente uma coleção. O que significa, e percebi que é muito mais aquilo que não está lá. Incide mais sobre a memória que está à volta do que os próprios objetos em si. E foi aí que decidi começar a criar uma coleção própria e a perceber o que é que me interessa guardar. Assim cheguei às pessoas, e ao encontro com as mesmas. É falso no sentido em que há um programa…
A palavra amante é demasiado forte e demasiado fraca ao mesmo tempo.
Em português, atenção. Mas é sobre essa questão. É sobre a forma como nós usamos essa palavra para uma terceira pessoa.
Enquanto teatro eu percebo a cena performativa e a ideia provocatória. Enquanto algo mais real, e em relação a como quando começaste a trabalhar outras coleções, acho menos verdadeira. Não o trabalho em si, mas o título Coleção de Amantes é mais falso do que os outros títulos.
Mas as questões que o projeto levanta, tal como isso que apontas é o trabalho já em si a funcionar. Acabámos de apresentar uma versão para TV da Coleção de Amantes na RTP2 que se tornou viral nas redes sociais. Os comentários que as pessoas fazem são sinal de que o projeto está a funcionar.
Sim o título tem força. Mas quando tratas os encontros por amantes é como se os desvalorizasses um bocado. Parece-me que houve aí uma coisa muito maior que não cabe na palavra amante como é entendida na língua portuguesa. Mas nos encontros tu pedes para tirarem uma foto, não é? As pessoas ficam com a fotografia?
Não.
O objetivo é parecerem sempre muito próximos?
Para mim o objetivo é o amante olhar para a fotografia e identificar aquele documento como íntimo.
Dizes que começaste este projeto para tentar encontrar alguém. Se encontrares alguém, isto vai mudar tudo? Eu acho que um ator é bom no momento em que se apresenta e acredita no que está a fazer, para que nós também acreditemos. Mas, no teu trabalho, tudo é mais pessoal como a minha própria música. Se eu estiver muito triste nunca vou conseguir fazer uma música feliz. Se dizes que começaste isto para encontrar alguém, se um dia encontrares, esta peça deixa de fazer sentido? Ou passa a ser falsa, e se é falsa, deixa de fazer sentido?
Eu não sei porque ainda não aconteceu. Comecei por colecionar amantes, agora também coleciono colecionadores, mas a verdade é que ainda não encontrei ninguém. A minha questão neste momento é: será que eu não consigo encontrar porque estou a fazer este projeto? Tenho encontrado muitas pessoas, mas a ideia será sempre testemunhar alguma coisa com alguém, ter um parceiro. Isso é uma questão para mim porque não sei se alguém vai perceber o que estou a fazer. Mas não sei. Se acontecer, com certeza alguma coisa se vai transformar.
Imagina-te daqui a 50 anos. És a artista que fez espetáculos com coleções de tudo e mais alguma coisa. Qual é a coleção que mais facilmente não está lá? Para ti o que é mais importante, algo que te preencha mais a ti enquanto pessoa ou uma outra que preencha o espetáculo que vais fazendo?
Não sei responder a essa pergunta. Cada coleção comunica de uma forma muito diferente. Nos Amantes, o espetador também cria uma relação muito forte. As questões que o espetáculo gera são muito potentes. Não só para mim, mesmo para as pessoas. Com as sua relações, a forma como lidam com o afeto, a viagem que cada um faz é muito forte e pessoal. Nesse aspeto é para mim difícil escolher porque ambas comunicam de formas diferentes, em lugares diferentes.
Vias-te a fazer algo não pessoal? Os teus espetáculos são todos à volta de algo que viveste em particular, e agora imagina que eras convidada para fazer e ou representar algo totalmente diferente. Isso faz sentido ou não?
Eu queria muito experimentar porque já não sei. Mas já fiz muitos trabalhos em que faço teatro e é trabalho. Estou muito curiosa, porque já não sei se sou atriz. Mas quero muito trabalhar com outras pessoas para conhecer outros trabalhos. Principalmente agora, que estou a voltar para Portugal, é a primeira vez que estou em Lisboa durante tanto tempo desde há sete anos. Mas também me pergunto, será que sou capaz de decorar um texto, e fazer uma personagem? Porque o corpo é meu, a emoção é minha, sou eu. Mas é isso, os meus trabalhos relacionam-se com uma experiência. Eu tenho uma experiência com alguém e depois transformo-a em teatro. E isso é muito potente, uma grande ferramenta até para o meu crescimento pessoal, artístico, tudo.
Será que chegas a um ponto em que não tens mais experiências e fica um buraco? Estou a dizer isto porque na música também é assim. Eu não me imagino a pedirem para tocar uma música qualquer. Também direi que não. Por isso também ainda não sei dizer se sou músico ou não. Eu estudei Engenharia e a música é algo que fui sempre fazendo e que foi sempre funcionando. Mas tu tens um outro percurso. Fizeste um curso de teatro.
Tenho medo que as pessoas me associem só às coleções em Portugal. Porque eu não sou só isso ou se calhar até sou, não sei. (Risos).
Isso depende da altura em que as pessoas te conhecem. Mas é bom ser-se só uma coisa, sendo muitas outras também.