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Fernanda Fragateiro – Entre a Arte e a Arquitetura

Fotografias: António Jorge Silva.

A exposição de Fernanda Fragateiro é tanto um exercício de arte como de arquitetura, uma ambiguidade que pode ser admirada com igual espanto em nomes como Gordon Matta-Clark ou Donald Judd.

O espaço tem sido desde sempre a principal preocupação e o medium da artista: o modo como ele é desenhado, a sua materialidade, a forma do vazio, a forma da forma, a atmosfera, o que ele contém de humano e o que lhe transcende. Um espaço que é ao mesmo tempo motor de experiências continuadas, de performatividade ou de vivência, e de expressão de contemplação. Atividade e passividade.

Na exposição Fernanda Fragateiro: dos Arquivos, à Matéria, à Construção, a artista faz uma revisão da sua metodologia com obras da Fundação EDP e serve-se do espaço da Central Tejo para uma relação dialogante com as peças em exposição. Na verdade, a galeria que transforma é uma atualização do seu trabalho, ou seja é um incremento no seu repertório. A incompreensão e a revolta de neutralizar este lugar mítico de Lisboa com paredes brancas tipo White Cube, incutiram em Fragateiro a necessidade de transformar aquele espaço, de esventrar essas paredes brancas, suprimi-las, cortá-las, obliterá-las.

De facto, a peça inaugural anuncia-nos o lado criador e gerador na destruição, que será mais subtração do que destruição como medida final. Uma série de destroços de edifícios lisboetas foram recolhidos pela artista para serem expostos no que poderá ser não só uma arqueologia do edificado, mas também uma arqueologia da cidade e do léxico e paisagem urbanos que a compõem. Nestes detritos, como noutros momentos da mostra, temos acesso às camadas do edificado, às peles de ambientes privados e íntimos de cada indivíduo: estuque, reboco, betão, tijolo.

Mas se é arqueologia, não deixa também de ser um requiem, um instante imortalizado da morte de composições espaciais dotadas de memórias e que agora se vêm à mercê da exploração imobiliária desenfreada, impulsionada pelo turismo de consumo rápido.

No interior da exposição, um recetáculo espelhado comporta toneladas de tijolos partidos, mais destroços que se compõem em prol de uma nova obra. E se o peso é adivinhável por mero cálculo visual e mental, uma leveza é igual e paradoxalmente sugerida: a delicada sugestão de uma sombra junto ao pavimento confere uma ligeireza ao conjunto, a que as quatro faces de espelho não são indiferentes.

E do chão somos conduzidos à verticalidade dos janelões da Central que iluminam a exposição e oferecem várias hipóteses de integração em paisagem consoante os matizes da luz e do céu. A artista relembra a importância da luz para desenhar o espaço e lhe conferir vitalidade. Um muro derrubado espalha tijolos pelo chão, um plano de linhas metálicas fragmenta e reflete o espaço, como se fosse prolongamento desses janelões. Algures, uma parede falsa foi cortada deixando ver a sua estrutura, o seu esqueleto.

Outras obras inscrevem uma certa militância política pelas mulheres na arquitetura: Fragateiro relembra nomes como Eileen Gray ou Denise Scott Brown, duas arquitetas que são esquecidas amiúde e raramente constam na literatura da história da arquitetura. Todavia, será o recurso a livros para mostrar esta temática um dos aspetos mais curiosos da exposição. É que os livros também têm espaço e lugares… Não será bem pelas imagens que neles figuram, mas o texto, associado à maior ferramenta conceptual que temos que é a imaginação, é um contador e contentor de espaços incertos mentais. O recurso a este medium invulgar permite divulgar esta precisa noção de que os livros, mas também as revistas ou qualquer periódico, têm um peso que transvaza a sua limitada fisicalidade, por todos os nomes neles contidos, por todos os lugares neles desenhados. A impressionante viga de revistas de especialidade que Fragateiro construiu é disso evidência.

A peça Laboratório de Materiais, 4 (2017) constitui uma espécie de síntese do trabalho da artista: uma espécie de valise duchampiana que se abre e conjuga com outras tantas para mostrar vários compartimentos, espaços nos quais habitam livros, ferramentas, revistas, materiais etc. Uma série de valises que articuladas parecem formar uma grande maqueta de construção minimal. É importante mencionar que esta obra surgiu por ocasião de um convite feito pela universidade de Harvard à artista que viu neste dispositivo uma hipótese de mostrar o seu trabalho aos alunos. Este desafio de pedagogia e de ensino desencadeou todo um processo criativo que se veio a materializar numa obra.

Ainda nesta perspetiva, e a título pessoal, recordo uma pequena conferência que Fernanda Fragateiro deu há cerca de dez anos no IST aos alunos de arquitetura. As luzes do modesto auditório desligaram-se e apenas um candeeiro de mesa e o projetor emitiam luz. Nunca aquele espaço anónimo foi lugar de conforto e empatia. Aquela pequena performance inusitada, naquele espaço autoritário, foi o bastante para perceber que pequenas mudanças de atmosferas trazem consigo momentos inolvidáveis. Seguia-se uma apresentação da obra Peça Para Guardar o Vazio (2005), um cubo que se desconstruía numa infinidade espaços possíveis, entre o áptico e o ótico, e de vivências várias consoante o espetador, ou, melhor, o visitante.

Rever esta exposição é relembrar a absoluta coerência do repertório artístico de Fernanda Fragateiro. A cada olhar de uma obra ou escultura, uma hipótese sempre renovada de espaços, num discurso entre minimalismo, fenomenologia, materialidade e habitabilidade.

Fernanda Fragateiro: dos arquivos, à matéria, à construção foi comissariada por Sara Antónia Matos e pode ser visitada na Central MAAT até 18 de setembro.

José Rui Pardal Pina (n. 1988), mestre em arquitetura pelo I.S.T. em 2012. Em 2016 ingressou na Pós-graduação em Curadoria de Arte na FCSH-UNL e começou a colaborar na revista Umbigo. Curador do Diálogos (2018-), um projeto editorial que faz a ponte entre artistas e museus ou instituições culturais e científicas, não afetas à arte contemporânea.

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