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Nasci num dia curto de Inverno

“Quanto peso aguenta a memória?” Assim inicia Miguel von Hafe Pérez o texto de folha de sala da exposição Nasci num dia curto de Inverno, do artista Nuno Sousa Vieira.

A pergunta é pertinente. Não só em termos curatoriais, porque a exposição é um embate franco com duas memórias – uma local e outra pessoal –, mas também em termos gerais, ontológicos, mesmo. Se a memória se torna insustentavelmente pesada, torna-se insuportável ao homem; se desaparece, como Voltaire em A Aventura da Memória introduz, o homem esquece-se do que é ser e cabe às musas fazer ver que “sem a memória não existe espírito”.

Mas uma hipertimesia, a incapacidade de esquecer e tudo lembrar, parece também insuportável. Funes, de Jorge Luis Borges, sofria desta patologia e a sua vida ficcionada não era muito diferente de uma tortura – uma recursão infinita de episódios era incapaz de filtrar e selecionar o mais relevante.

Na mostra em exibição na Fundação Portuguesa das Comunicações, Nuno Sousa Vieira conjura e navega, como se referiu, em duas memórias, uma autobiográfica e intergeracional e outra de índole coletivo, urbano: o seu pai trabalhou naquele lugar que em tempos foi uma fábrica de plásticos. O trabalho junta as duas, sem, no entanto, entrar num processo extremado entre a recordação absoluta e a tibieza nostálgica do que é recordado e de como é recordado.

As obras não se apresentam de forma aleatória no espaço, na medida em que este é construído através daquelas. Estruturas metálicas, cadeiras e borrões de tinta negra plástica são mnemónicas espaciais que definiram em certa parte a vida de uma pessoa. A rotina do trabalhador fabril, de um proletariado em extinção, é ali encenada, com poucos elementos, num percurso circular, repetitivo, quotidiano: bata, alta tensão, trabalho, descanso, bata, alta tensão, trabalho, descanso…

A própria modernidade e a sua temporalidade são igualmente debatidas, quer do ponto de vista da história universal, quer do ponto de vista da história da arte e dos movimentos artísticos que enformam e conceptualizam esta exposição. Como von Hafe Pérez refere: “entre o minimalismo e a sua teatralidade, isto é, a necessidade de perceção da sua envolvente e o modo como a modifica, a arte processual, na descodificação inerente à própria forma, e as respostas contextuais que determinam grande parte da produção contemporânea a determinados desafios ou encomendas, as obras de Nuno Sousa Vieira remetem claramente para temporalidades diferidas. O tempo de sentir, o tempo de entender e o tempo de questionar”. E é através da performance que estas ideias vão sendo formuladas.

Indispensável à exposição é a sua tradução literária através da folha de sala, um documento de rigorosa catalogação (preciosa) deste trabalho do artista – elemento descodificador, também ele, de um trabalho e de uma memória. O texto permite-nos aceder a uma noção de vidas, experiências, vivências – tempos – fragmentadas por uma atomização moderna, ou pós-moderna, que encontram aqui uma unidade crítica a que o observador tem que se predispor para a ela aceder e, daí, a necessidade de uma performatividade. Um guião prévio fundamental, sem ser exaustivo e muito revelador.

Nasci num dia curto de Inverno, de Nuno Sousa Vieira, com curadoria de Miguel von Hafe Pérez, em exibição na Fundação Portuguesa das Telecomunicações até 8 de Julho, numa parceria entre esta instituição e a Galeria Bessa Pereira.

José Rui Pardal Pina (n. 1988), mestre em arquitetura pelo I.S.T. em 2012. Em 2016 ingressou na Pós-graduação em Curadoria de Arte na FCSH-UNL e começou a colaborar na revista Umbigo. Curador do Diálogos (2018-), um projeto editorial que faz a ponte entre artistas e museus ou instituições culturais e científicas, não afetas à arte contemporânea.

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