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Ramón Puig: pensar fazendo, fazer pensando

Ramón Puig viveu a maior parte da sua vida junto ao mar, tal como hoje em dia em Vila Nova i la Geltrú onde, da varanda, observa o mar Mediterrânico, o porto e o seu barco. Lembra que, quando era pequeno, queria ser biólogo, estudar o microcosmos. Mais tarde quis ser astrónomo, para estudar o macrocosmos. Depois, quis ser artista e ingressou na escola Massana, em Barcelona. Nunca seguiu sonhos infantis, mas associa essas ambições em muitas das suas joias, realizando um processo de viagem com ficções e criando metáforas que se interligam com desejos de infância, esses macromundos e microespaços entrelaçados que são as suas joias.


Broche, 2016, série Génesis, 70x75x12 mm

A palavra grega theorein significava observar e viver uma experiência sensível – metaforicamente, sair da polis, viajar e regressar – para narrar, descrever, teorizar. Viajar foi e é, muitas vezes, um meio de recepção e de percepção do desconhecido, de descoberta. Se, a miúde, hoje é motivo de aventura turística fugaz, a viagem também pode ser motivo e sinónimo de reflexão, para quem vive, experimenta e observa atentamente algo ou um lugar. Como metáfora nascida de theorein, a viagem constituiu-se como elemento motivador da literatura. Italo Calvino foi um dos autores que transportou esta figuração para a sua obra. Em As Cidades Invisíveis, o personagem Marco Polo representa um papel de explorador. Saiu do seu lugar de origem e viajou pelo desconhecido para descobrir cidades e os modos de viver dos seus habitantes. Ao voltar, foi descrevendo paisagens a Kublai Kan, imperador dos Tártaros, que o escutava entre ociosidade e curiosidade pelo seu fantasiar. Esta viagem era imaginária, tal como as cidades são invisíveis.

As metáforas em Calvino remetem o leitor para uma forte componente visual. De facto, no seu livro Seis Propostas para o Próximo Milénio, resultante de conferências em 1985 na universidade de Harvard, a visibilidade é um dos conceitos que aborda como fruto explorado e lógica da sua obra. Contrariamente a apresentar uma visão apocalíptica sobre a transição do milénio, Calvino propõe-se dar conta da vida de conceitos que vêm desde a antiguidade, transfigurando-se até hoje. Contextualiza-os na sua obra e na de outros autores, dando conta do seu interesse por cada um dos cinco que, por fim, pode apresentar: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade e multiplicidade. Explica como os interpreta, como os torna operativos através de uma lógica múltipla, porquê e como os trabalha na sua obra, seja como ferramenta, seja como proposta de experiência para o seu público.


Broche, 2016, série Suite de Dresden, Variaciones sobre un paisaje invisible, 80x85x10mm

A viagem de descoberta desse Marco Polo, criado por Calvino, assemelha-se ao processo de trabalho de Ramón Puig. É uma jornada criativa na qual, como Marco Polo, vai criando à medida que vai fazendo. Esta jornada indica um processo em itinerário e de aprendizagem, um caminho que se faz ao andar. Kublai Kan representa-nos a nós, o público. Experimenta, também, a seu modo, os caminhos e lugares imaginados por Marco Polo. Se, para além de viver a experiência de observar joias de Ramón Puig, aceitamos também percorrer o seu caminho – isto é, se conhecemos o seu processo criativo, tal como me foi possibilitado através de entrevistas – podemos descobrir, experimentar e interpretar, ao nosso modo, como cria as metáforas e sinédoques que há em cada peça.

Pensar fazendo, fazer pensando são palavras de Ramón Puig. No seu estúdio, sobre a mesa, experimenta, trabalha, viaja mentalmente pelas suas memórias e pela sua vida atual. Vai relacionando, confrontando, descobrindo, inventando, construindo símbolos, metáforas e ficções. Vai tomando decisões. Pensa com as mãos. Sente com as mãos, enquanto trabalha. O prazer de trabalhar com as mãos fica impresso na matéria, tal como as palavras de Marco Polo, ambos fantasiando, fabricando ficções e metáforas. As metáforas que Ramón Puig produz parecem surgir como as desse personagem, à medida que vai pensando. São fabricadas em diálogo entre reflexão, mãos e matérias, sobre a mesa de trabalho. Em processo, o material sensível vai coadjuvando o material mental e vice-versa, intervindo para configurar intenções e estabelecer lógicas na construção de sentido de cada joia.

Italo Calvino, uma châtelaine, “é uma metáfora visual que tenta explorar e realizar as seis propostas de Calvino: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade e constância.” Tem uma preferência especial por Calvino a quem dedicou esta peça que integrou a exposição Challenging the Chetelaine, em 2006. Terá relacionado o seu processo de trabalho com Marco Polo descrito por este escritor? Talvez não, mas também descreve o seu processo criativo como se fosse uma metafórica viagem de descoberta. Numa entrevista que me deu, falando do seu processo de trabalho, Ramón Puig lembra, por palavras suas, uma ideia que reteve de Henry Miller: “eu escrevo para aprender a viver. No dia em que tenha aprendido a viver, não escreverei mais, mas tenho oitenta anos e necessito de continuar a escrever porque ainda não aprendi a viver. Então, para mim, experimentar é aprender a viver, no sentido de aprender a dar valor. É um processo de aprendizagem constante.”


Broche, 2016, Suite Antártica, 67x70x10 mm

A intuição e as dúvidas , a consciência e a crítica, o público que tem em mente, acompanham-no nesta viagem que representa reflexão e, simultaneamente, uma experiência de aprendizagem. Segundo o próprio joalheiro, esta viagem segue fases diferentes ou distintos momentos reflexivos, diria eu. Afirma que quando está a trabalhar não tem intenções definidas. Segue só a sua intuição. As intenções poiéticas e comunicativas são definidas e redefinidas sobre a mesa e depois do trabalho. As experiências que pretende propor e partilhar com o público e como mundo da joalharia, são pensadas posteriormente. Comenta nessa mesma entrevista: “começar a trabalhar significa pôr-me num estado de tensão.” Explica que trabalhar com as mãos é um processo que consiste em pensar, escutar, estar atento, ver, observar o que vai surgindo, o que sugere a matéria. Para si, quando termina cada peça, vem outra fase, começando outro tipo de racionalização que surge com interrogações. “Porque estou a fazer isto? Porque fiz isto? Porque estou a fazer desta maneira? Que pretendo? Provavelmente, as respostas não aparecem imediatamente. Então, continua a trabalhar. O trabalho põe uma série de questões às quais há que dar uma explicação racional, objetiva – tenta-se – e, se não se consegue, há que continuar a trabalhar e, entretanto, continuar a pensar. Eu muitas vezes digo que a resposta não aparece senão ao cabo de dez anos, pelo melhor. Então, acabas por compreender aquilo que tinhas feito há muito tempo.”

Esta jornada não é comparável à de um artista gestual que, supostamente faria as suas pinturas seguindo os seus gestos. Contudo, há uma espécie de proximidade, na medida em que aborda as matérias, a sua dureza, a sua plasticidade, a sua cor, a sua temperatura, a sua expressão como se estas, a própria manualidade e o facto de senti-las com as mãos, também o ajudassem a pensar, associando ideias e reflexões. Depois de terminar uma peça toma decisões finais, define e redefine intenções, explica-se a si mesmo porque e como criou uma dada metáfora, decide como prosseguir a sua viagem. Por um lado, estes aspetos tornam-se compreensíveis pelas suas palavras sobre estes temas. Por outro, identificam-se nas joias. Considero que, pelas duas vias, também explicam as suas contribuições para configurar o mundo da joalharia, a sua identidade e intenções na extensão da arte.


Broche, 2016, série Génesis. Homenaje a Manfred Bischoff, 75x65x15 mm

Sobre Marco Polo, conhecemos a sua inter-relação como o público, representado por Kublai Kan nas Cidades Invisíveis. Sobre Ramón Puig, refiro joias, mas também momentos que não veremos. Estes são seus, íntimos e complexos, porque envolvem uma multidão de temas, de ocupações e de preocupações que vai esclarecendo como caminhante ao fazer o seu caminho ao andar. Portanto, prestam-se a que, mais além do que vemos nas suas peças, se introduzam outro tipo de interrogações que, sendo de segundo grau, se baseiam nas palavras de Ramón Puig. Nesta perspetiva – nessa segunda fase de reflexão, da qual fala, talvez longe da sua mesa de trabalho – toma distância, volta-se sobre a sua alteridade criativa e a sua obra, construindo ambas simultaneamente ou aprendendo a fazê-lo, usando palavras suas. Já longe de pensar com as mãos, dos passos reflexivos que dá diante da mesa de trabalho, distancia-se e interroga-se. Será o que havemos de fazer também, em diálogo com as obras, interpretando cada peça.

Ana Campos nasceu no Porto, Portugal, em 1953. É joalheira e dedica-se, também, à investigação nesta área. No campo do ensino, foi professora de projeto e de teorias da arte e do design da joalharia contemporânea. Até 2013, foi diretora do ramo artes/joalharia e coordenadora da pós-graduação em design de joalharia da ESAD – Escola Superior de Artes e Design, em Matosinhos, Portugal. Tem-se dedicado a curadoria e produção de exposições de joalharia nacionais e internacionais. Licenciou-se em Design de Comunicação na FBAUP. Estudou joalharia no Ar.Co, Lisboa e na Escola Massana, Barcelona, como bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian. Realizou uma pós-graduação em Relações Interculturais, pela Universidade Aberta, Porto, que conduziu ao mestrado na área de Antropologia Visual, cuja dissertação se intitula "Cel i Mar: Ramón Puig, actor num novo cenário da joalharia". A orientação foi de José Ribeiro. Atualmente, é doutorada em filosofia na Universidad Autónoma de Barcelona. Terminou o doutoramento em 2014, com orientação de Gerard Vilar. Desenvolveu uma tese intitulada: "La joyería contemporánea como arte: un estudio filosófico".

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