(Português) O Homem que gostava de cidades deixou-nos
“O Homem que gostava de cidades” deixou-nos.
O Arquiteto Manuel Graça Dias deixou-nos.
Partiu sem grandes avisos, numa discrição que não lhe era atribuída e deixou-nos com obra construída, com obra premiada, com obra não consensual que merece ser estudada. Deixou-nos com reflexões sobre arquitetura moderna, sobre cidades, sobre deambulações com referências à musica e à literatura, deixou-nos com a ousadia do seu olhar crítico, dos seus comentários acutilantes, com a ironia de um discurso que tanto chegou ao público através dos seus programas de televisão e de rádio, como aos seus tantos alunos, que descrevem as suas aulas como inesquecíveis. Ele projetou, construiu, influenciou e difundiu a nossa arquitetura com sabedoria e inquietação.
Manuel Graça Dias nasceu em Lisboa, cidade onde partilhava com Egas José Vieira o atelier Contemporânea. Autor de obras que retratavam a sua peculiar personalidade, como a sede da Ordem dos Arquitectos / Banhos de São Paulo em Lisboa, o Teatro Municipal de Almada e o novo Teatro Lu.Ca, em Lisboa, não projetava para ser entendido, não procurava unanimidade. Arriscava e ousava em cada um dos seus projetos, revelando sempre as referências que trazia da arquitetura moderna e ambição de trazer mudança à cidade.
“As cidades nunca param; as cidades nunca estão bem; as cidades são organismos vivos e os organismos vivos estão sempre em ‘movimento’, nunca estão bem, nunca estão ‘acabados’.”
Aos 65 anos, continuava a ser uma “pedrada no charco” no ensino da arquitetura, atualmente na Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto e na Universidade Autónoma de Lisboa, tendo também sido professor na Faculdade de Arquitetura da Universidade Técnica de Lisboa. Ninguém ficava indiferente ao seu discurso arrojado, nas edições do J_A que dirigiu, nas participações públicas que fazia, nas conferências com que nos brindava.
(Lembro-me de em 2002 Manuel Graça Dias chegar junto dos alunos de Arquitetura da Universidade de Évora com pedras da calçada nos bolsos das calças, de nos mostrar a diferença que estas pedras faziam no seu caminhar, de nos brindar com um início de conferência com as suas célebres recolhas de imagens de cuecas (azuis, naquele caso) estendidas nas marquises das cidades. Reinava o bom humor, mas sobretudo a eloquência de um olhar intrincado)
Hoje, nas redes sociais, prestam-lhe homenagens vindas dos diferentes círculos da arquitetura portuguesa, palavras de apresso e admiração, porque ninguém lhe era indiferente… exatamente nas mesmas redes onde ele também nos despertou gargalhadas ou indignações. O homem que gostava de cidades deixou-nos, mas não nos deixou iguais. Não foi perfeito nem o queria ser, não foi ingénuo, não foi contentado, foi um homem que nos provocou, espicaçou, e partiu com um discurso inacabado, porque ainda teria tanto a acrescentar.
“Por exemplo: nós, qualquer um de nós. Alguma vez estivemos bem? Completamente bem? E as coisas que nos acompanham? Por quanto tempo? Não, não existe a perfeição! Não, o ‘acabado’ não existe!”
Obrigada, Manuel!
(in, O Homem Que Gostava de Cidades, Relógio d’Água, 2001)