DIÁRIOS DO UMBIGO

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Trinta pessoas fechadas num barco de pesca durante quatro dias, sem banho e com sempre-arroz e dormida no chão: não parece o melhor plano de sempre? Não, não parece. E também não foi.

O destino? Ilha das Flores.

É daquelas coisas que se sabemos que existe, temos que fazer. Mesmo que meta possíveis naufrágios nos sobejamente noticiados mares indonésios.

O nosso capitão era o senhor D., um bipolar ex-traficante de droga que fez absolutamente nada para aproveitarmos a viagem além de não afundar o barco, provavelmente porque estava distraído a fumar e a beber cervejas em vez de estar na cabine onde nunca o vi.

Durante o primeiro dia demos uns mergulhos em mar alto enquanto nos apercebíamos que todos os outros barcos eram maiores que o nosso, depois foi só navegar e arroz com vegetais.

Às oito da noite estava tudo deitado nuns colchões de campismo alinhados no deque superior. Quem dormia nos últimos tinha que ir gatinhando por cima dos restantes, já que a altura do pano que fazia de tecto não permitia andar de pé e o espaço entre pessoas era inexistente. Mas quatro bravos ficariam todas as noites à proa até mais tarde a contar estrelas cadentes com histórias e a ver a lua de fogo a subir lá à frente. Estão a ver o estar-se no meio do mar noite dentro, tudo estrelas, lua e silêncio? Aqui valeu logo a pena para sempre.

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Manhã seguinte atiramo-nos à água para nadar até à ilha Mojo que ficou famosa depois de ter recebido a princesa Diana. A nós calha-nos uma cascata cheia de gente e pouco mais. Depois de algum nada memorável snorkeling fazemo-nos ao mar para uma jornada de 17h sem paragem. E aí sim, o pessoal começou a abrir as cervejas para ajudar o tempo.

Sete da manhã, boa hora para subir montanhas. Do topo de uma ilha de ninguém já só penso na próxima paragem, o melhor da viagem, o snorkeling com mantas gigantes de que toda a gente fala. Se bem que a vista daqui também é boa.

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Chegamos. Estava eu de olhos esbugalhados para uns vultos perigosamente grandes lá do fundo e eis que o capitão começa a gritar: é agora, saltem! À voz de comando respondem trinta corpos a cair em monte, à caça e de Gopro em riste enquanto se luta contra a corrente. Só que um deles ficou para trás com uns óculos partidos na mão a ver o mundo nadando na direcção contrária. E esse fui eu. Depois foram algumas horas a ouvir histórias incríveis daquilo em que não participei enquanto ponderava se punha os tampões nos ouvidos ou me atirava borda fora.

Ainda com azia até cá acima nadei depois até à praia Cor-de-Rosa onde a areia é dessa cor devido aos milhões de partículas de corais que ali foram parar. O snorkeling aqui é contra corrente, portanto é nadar para a direita e esperar que paremos no barco certo, lá ao fundo à esquerda.

Chega o último dia, continuamos sem tomar banho, e esperam-nos os dragões de Komodo. Uma das maravilhas da Indonésia que afinal foi dos espectáculos mais tristes para quem não vai a circos, zoológicos ou passeatas em elefantes mal-tratados para ver tigres de coleira e drogados. Coisa de turistas, é sabido. No Parque Nacional de Komodo, enquanto o nosso guia fingia procurar os dragões no meio da selva, começamos a ver um lagarto gigante lá ao fundo e aceleramos o passo na excitação. Chegando, vemos dois dragões parados no meio de um círculo marcado no chão a olharem para uma cabra morta pendurada numa árvore. É uma coisa que as cabras gostam de fazer ou será que as põem ali todos os dias depois de domesticarem os dragões? Desconfio.

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Diz-nos o guia da sorte que temos em tê-los apanhado. A resposta é um levantamento de sobrolho colectivo e um virar costas em silêncio até ao barco.

Finalmente para o barco às três da tarde no meio do mar para a noite da festa que não vamos ter. Todos os outros barcos começam a chegar ao fim da tarde depois de um dia cheio de animadas actividades que nós não tivemos, começam a ligar luzes e colunas e é festa até lhes apetecer. Nós ficamos a ver enquanto o nosso capitão nos manda para a caminha às nove da noite, ao mesmo tempo que vai contando o dinheiro que lhe pagámos para não fazer nada.

E que tal foi essa viagem de barco, perguntam vocês.

O snorkeling foi mau, as mantas inexistentes, os dragões uma tristeza e da comida nem falar. Mas a experiência de viver colada a 30 estranhos sem o mínimo de conforto, privacidade ou terra debaixo dos pés, isso sim, valeu toda a pena.

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* Este texto não é escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico.

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