CINEMA

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Passamos anos a consumir ficção e ainda pasmamos, num jeito tão inocente como peculiar, com o cinema documental. Porque é o mais próximo de uma tela de Edward Hopper em movimento, e é a realidade do real. Embora não esteja isento de subjectividade, é a vida sem cenários – as ruas das cidades sem super-heróis no ar, as florestas sem chroma. É a história analógica, e somos nós.

Com uma dinâmica de montagem que nos remete de imediato para o entusiasmo de Searching for Sugar Man, o filme de John Maloof e Charlie Siskel foi lançado em 2013 mas mereceu recentemente uma nomeação da academia para Melhor Documentário. Finding Vivian Maier causa um leque de sensações mas, sobretudo, volta-nos a ferir com a implacável verdade do desconhecido.

Durante um dos leilões onde tentou reunir imagens de época, Maloof descobriu dezenas de negativos referentes a uma tal Vivian Maier, apercebendo-se rapidamente que não se tratavam de fotografias comuns mas sim de retratos dignos de uma street photographer de topo.

Nascida em Nova Iorque no ano de 1926, passando a maioria da adolescência em França, Vivian Maier trabalhou como nanny, e é através de testemunhos de algumas dessas famílias que construímos a nossa própria visão sobre este ser misterioso – que revela tanto de sombrio como de brilhante.

Geralmente descrita como uma mulher reservada, estranha e curiosa, cria-se uma brecha para um debate relativamente à sua essência – muitos a viam como uma louca. Demasiado ligada às suas coisas, possessiva com os seus objetos, jornais e recortes, Vivian tinha uma visão extraordinariamente apurada, incrivelmente sensível. Através da sua obra fotográfica, que conta com mais de 100.000 negativos (posteriormente revelados) e cerca de 3000 impressões, contemplamos uma preocupação com o absurdo e o insólito ao mesmo tempo que nos apaixonamos pela sua beleza delicada.

Fotografando maioritariamente em Nova Iorque, Chicago e França, existe uma coerência estética que nunca é descuidada. Maier utilizava principalmente rolos Kodak de 35mm e uma câmara Rolleiflex, que facilitava as fotografias de rua, dado a sua capacidade de discrição. O resultado é um reflexo franco e polido de pessoas genuínas que passeavam nas avenidas, parques e ruas por onde deambulava sozinha ou com as crianças a seu cargo.

A grande dúvida que persegue os admiradores do seu trabalho prende-se na falta de (re)conhecimento. Vivian nunca mostrou a sua arte e tudo indica que não o intencionasse fazer, como uma paixão que quisesse apenas para si – não ansiava ser mais do que era, ignorava o status. Porque, ao seu próprio jeito, era um espírito livre. E os espíritos livres não se comprometem.

A beleza da pelicula de 83 minutos encerra-se nas fotografias impressionantes, mas também na descoberta de uma mente que nos intriga até ao último frame. A lembrança de não conhecermos nada totalmente, o encanto do inesperado e o deslumbramento com o enigma são constantes e causam um inevitável sorriso – que, se falasse, murmurava baixinho: “universo, és um sacana”.

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