DIÁRIOS DO UMBIGO

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Ilustração: António Néu.

Saio do Carmo pela rua que vai dar ao pé da Estação do Rossio, sinto-me triste e vivo, e estou em meditação. Medito a andar, seguindo uma tradição antiga mas pouco conhecida. O que prevalece é a ideia, algo exótica, para nós ocidentais, de que a meditação é a imagem de um monge ou de alguém sereno, em posição de lótus, quase a levitar, e num ambiente de tranquilidade, então se no meio da natureza é a cereja sobre o bolo. É a ideia da não-acção, é valida é claro, mas a não-acção está dentro de nós, onde quer que estejamos.

Entretanto chego ao Rossio, em frente à estação, coração da cidade, e tudo mexe, tudo se mexe no universo ao mesmo tempo, mesmo parado. Mexo-me eu, na meditação em andamento, com os pensamentos a fluir e em análise e ao mesmo tempo liberdade de pensamento. Mesmo parado agora, observo a multidão que passa como a corrente de um rio, mas um rio turbulento de correntes contrárias, em choque, é a vida no seu fervilhar, o momento-movimento, o caos cósmico, fractal, a ordem no caos, e o fumo do vendedor de castanha assadas em frente a mim como adereço de cenário de filme americano de névoa cósmica, de filme de ficção cientifica spilbergiana, e sinto-me triste e vivo. E medito, no meio do caos, onde é mais difícil, portanto mais valioso, no meio do mato é fácil. Meditação em acção, como no kung fu, quando os monges começaram a ter que praticar exercício, meditação no meio da vida, do bem e do mal, porque não deve ser uma fuga à realidade mas sim um exercício para a enfrentar o mais forte, para derrotar os medos. É como o outro conceito habitual do Zen-pacífico, quando não sabem que o Zen apela também ao movimento, ao humor, ao absurdo, ao humor absurdo, à anedota e palhaçada. Perante o Zen-pacífico eu declaro-me um Zen-atlântico aqui em plena cidade de rio-quase-mar, em plena Estação do Rossio. Não sou um Zen à esquerda, não sou um Zen ninguém, sou um Zen à hora! Coloco a mente como a cabeça de um alfinete em pleno Rossio. Coloco o Rossio na Rua da Betesga.

É a mesma ideia recorrente e cliché das almas gémeas. A paz que deve existir entre ambas não deve ser uma paz de fuga, uma paz podre, mas sim de complemento através do crescimento, e crescer, meus amigos, dói. Desculpem desiludi-los mas a perfeição não existe. É construída dia a dia, não com fugas mas com confrontos de egos, com diálogos diários, com cedências saudáveis, com honestidade. E com perigo, o outro tem que provocar a sensação de adrenalina, de curiosidade, essa coisa de serem totalmente iguais é falso. São dois egos a trabalharem para se fundirem em algo quase perfeito, a tal paz trabalhada. Estou triste e vivo, amo e grito.

Para Baudelaire, que teorizou sobre o dandismo, em especial em Paris, “flâneur” era “uma pessoa que anda pela cidade a fim de experimentá-la”. Já a “derivé” de Guy Debord era algo diferente. Eu simplesmente vagueio e medito. Por agora triste, mas vivo, vivo porque amo, e porque sei, que voltarei a ser alegre, e sei, porque o Mistério assim me diz.

Parece que um americano que trabalha para uma ONG, apaixonado por Lisboa e por cinema português, ouviu num filme o fado Foi na Travessa da Palha, de 1958, cantado por Lucília do Carmo. Foi à procura da Travessa mas ela já não existe. É hoje a Rua dos Correeiros. Ele não a encontrou é claro. Mas não desistiu. Eu também não.

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