DIÁRIOS DO UMBIGO

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Fui apresentada à Susana num jantar em casa de amigos e numa companhia de rapazes éramos a escolta feminina. Partilhámos uma mesa deliciosa onde se serviam amêijoas, pasta e falos múltiplos. Às tantas a voz de Susana elevou-se e, num lamento, essa coisa da condição feminina nas relações humanas caiu no prato como cai um cabelo.

“When you're eating there's nothing more repulsive than finding hair in your mouth. I like that the hair can be a way to muffle sound, it's like she killed the cheat chat part of the tea ceremony (…)" disse Jenny Holzer sobre Object (Le Déjeuner en fourrure), 1936, o manifesto de Meret Oppenheim em forma de chávena revestida de pêlo. É certo que as afinidades de género não garantem empatia entre duas desconhecidas e, além de me ter cruzado uma ou outra vez com Susana, pouco sabia sobre ela. Abordar lugares comuns seria assim tão surreal quanto tentar descolorar o cabelo, que entretanto passava de boca em boca. Retive-me na observação da sua silhueta perfeita, que enquanto falava movia-se como uma ampulheta delicada.

Só nos voltámos a cruzar meses depois, na inauguração da exposição de Susana Mendes Silva na Fundação Leal Rios, onde a artista revisitou o cabelo, um material comum a projectos como Distúrbio (2006) e Square Disorder (2008), e que nesta instalação apropria-se do espaço transformado em Rectangle Disorder. Como não tinha referências anteriores fui deslumbrada e, antes de conseguir ver, senti as centenas de fios de cabelo, cuidadosamente suspensos e alinhados numa grelha rigorosa que tecia toda a sala - à primeira vista vazia. Uma “desordem” ou “desarranjo” que poderia ter-se desenvolvido a partir da genética das próprias paredes, como um tipo de vírus raro capaz de conspurcar a racionalidade arquitectónica do espaço e o etéreo white rectangle, agora, metamorfoseado aberração orgânica ou então um ser superior com as energias femininas e masculinas impecavelmente alinhadas.

Atravessei o rectângulo de braços entreabertos para receber o toque dos cabelos que me acolhiam com carícias. Procurei os nós, as ligações, a origem da teia e dos fios - Seriam da artista? São castanhos como os dela. Será que os coleccionou desde a infância? Seriam de mulheres que vendem o cabelo para sustentar a família ou serão sintéticos? Teriam sido cortados, teriam caído naturalmente, arrancados em autoflagelação? Ora só, ora entrelaçada com grupos que conversavam sob a trama frágil, completei o percurso no primeiro andar onde as janelas panorâmicas permitem reviver a experiência observando o comportamento dos outros visitantes. Perplexos e relutantes ao contacto com os cabelos, que substitui de imediato o aparente despojamento do espaço, curiosos ou já familiarizados com a instalação, que vista do plano superior se torna quase invisível e cujos fios só se mantêm presentes nos afagos mímicos e movimentos projectados no vazio.

Uma das amigas “De vez em quando, pega e arranca um cabelo. Repete o gesto uma e outra vez até se levantar da mesa. Os fios mutilados vão parar a um cinzeiro.” É a história com que o curador Pedro De Llano abre o texto da exposição, assim como a entrada no espaço parece transportar-nos para um estado de transe e alienação, indispensável à participação nesta desordem de “amigas”.  A relação dos homens com o cabelo define-se à partida pelo ter ou pelo ser careca, já as mulheres têm no seu cabelo um factor de escrutínio da própria feminilidade e foi assim, no prolongamento do meu próprio cabelo, que me encontrei no labirinto de Susana Mendes Silva.

Sem saber, a artista agradeceu a minha presença, como se devem agradecer os elogios francos, de sorriso e olhos cheios. Senti-me acolhida no seu mundo, fui parte integrante de Rectangle Disorder e, durante o tempo que o percurso durou, seja pelo seu toque de cabelo ou de Midas, a minha silhueta de maçã transfigurou-se por simbiose na silhueta perfeita que todas as mulheres (e homens) desejam - a de Susana.

Rectangle Disorder de Susana Mendes Silva

Até 7 de Março de 2014 na Fundação Leal Rios em Lisboa

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