MÚSICA

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O ano de 2013 assistiu a duas campanhas de marketing fervorosas no território da indústria discográfica. Dois processos diferentes que vão inevitavelmente deixar marcas para o futuro, pela forma com que comunicaram os discos e bandas respectivas em direcção à actual geração do Spotify.

Um desses momentos pertence à dupla francesa Daft Punk e ao registo Random Access Memories, num regresso tão aguardado, que o suspense acumulado resultou num dos maiores sucessos comerciais do ano. E muito se deveu claro à campanha de publicidade por detrás dos andróides franceses, com pedaços de telediscos a surgirem na Internet ou em anúncios de televisão, assim como vídeos de produção, com alguns dos colaboradores a prestarem depoimento, deixando os restantes mortais a salivar, nem que fosse por mais alguns segundos de música.

Quando a poeira provocada pelo vendaval Daft Punkiano assentou, eis que surgiu outra tempestade de marketing…

Sabia-se que os Arcade Fire estavam a preparar novo álbum e alguns rumores davam conta que o grupo do Canadá tinha unido esforços com o mentor dos LCD Soundsystem, James Murphy.

Todos os pedaços de informação foram consumidos e discutidos ao pormenor, não fosse a banda em causa um dos nomes mais importantes do actual rock independente e que ainda por cima tinha vencido, com o álbum The Suburbs, o Grammy para melhor disco de ano em 2011. Ou seja, os Arcade Fire estavam sob o olhar atento da indústria, dos meios de comunicação da especialidade, de toda a massa humana que segue o grupo desde o já distante Funeral de 2004, assim como os novos fãs que descobriram as suas canções naquela memorável cerimónia dos Grammys, onde os Arcade Fire bateram Eminem, Lady Gaga ou Katy Perry.

Nesse turbilhão de informação, ou falta dela, meses antes da edição deste novo trabalho, os Arcade Fire deixaram escapar a palavra Reflektor. Seria o nome do álbum? Do single? Não se sabia.

Em Julho a banda anuncia oficialmente que ia editar o novo álbum a 29 de Outubro e mais ou menos na mesma altura, começa a surgir em paredes de várias cidades americanas um graffiti, um desenho e um nome – Reflektor. Fotografias foram tiradas e colocadas na rede social Instagram, com o destaque para uma data em particular, 9 de Setembro.

E é nesse mesmo dia que é revelado o primeiro single do novo álbum, nada mais nada menos que o tema Reflektor. De súbito, todos se apercebem do impacto de James Murphy no som dos regressados Arcade Fire, com ritmos mais frenéticos, dançáveis e coloridos. Mas apesar do aparente carnaval, o grupo mantinha a sua identidade, numa catarse constante, que salta imediatamente da gravação para os pulmões e garganta de quem ouve. Só que desta vez, havia um pouco mais de ritmo à mistura. E como se não bastasse, os Arcade Fire concluíam a surpresa de nova música, com a participação especial de David Bowie, um dos mais fervorosos fãs do colectivo canadiano, bem desde o início.

E por pegar em Bowie e voltando a campanhas de marketing, não esquecemos claro o regresso do compositor este ano, num lançamento quase surpresa de The Next Day. Afinal David Bowie ainda continua a saber prever como ninguém como funciona a indústria musical.

A expectativa em relação ao novo Reflektor foi um crescendo raras vezes visto na indústria musical. Olhe-se para a actuação do grupo no Saturday Night Live, em finais de Setembro. Esse episódio do histórico programa de comédia foi visto por mais de seis milhões de telespectadores.

E logo a seguir ao SNL, o canal NBC transmitiu um especial de 20 minutos, uma actuação de novas músicas por parte dos Arcade Fire. O mini-filme concerto contou com algumas personalidades, como Bono, Ben Stiller, Michael Cera ou Zach Galifianakis. Ainda sem o novo disco nas lojas, os Arcade Fire eram ali, no final de Setembro, a maior banda do planeta.

Claro que todo este histórico até à edição de Reflektor nada conta se o álbum não for bom ou defraudar as expectativas, que já se encontravam altíssimas.

Mas confortem-se os espíritos seguidores dos Arcade Fire. Reflektor é simplesmente uma das melhores obras musicais dos últimos anos. Depois das estruturas mais contidas de The Suburbs, o grupo desafia-se em todas as frentes, com 13 músicas que se espalham por dois discos, durante 76 minutos.

Se antes havia contenção, agora existe liberdade. E como um prisma que permite que a difracção da luz em diferentes cores, também os Arcade Fire se atiram sem rédeas a diferentes géneros e atitudes de uma só vez. Reflektor é complexo, ambicioso, denso e por vezes frustrante, mas no bom sentido. Não deixa o ouvinte ficar preguiçoso nem em terreno seguro, seja de música para música ou mesmo numa só canção.

Por exemplo, em Here Comes The Night Time, os Arcade Fire dançam em pleno carnaval haitiano (e não por acaso, já que grande inspiração para as novas canções vem do Haiti, país de origem da família da Régine Chassagne, multi-instrumentista e casada com o vocalista Win Butler) para logo a seguir passarem para um ritmo mais lento, rumo mais tarde a novo momento apoteótico. Tudo se torna possível, com faixas a alternarem entre a pop, rock, afrobeat, krautrock, electrónica, sintetizadores, orquestras ou colagens de sons de rua.

Os Arcade Fire pegam nas suas influências todas, nas novas descobertas, como é o caso da música das Caraíbas, e sem deitarem nenhuma pitada da sua identidade pela janela fora, misturam tudo, quase de forma esquizofrénica e conseguem criar algo de novo. Reflektor faz lembrar alguns momentos de experimentação de gigantes da pop, como os Roxy Music ou Talking Heads, quando conduzidos por estranhos caminhos sónicos por Brian Eno.

Claro que os Arcade Fire encontraram o seu próprio Eno em James Murphy, que produz quase todas as faixas do registo, dividindo funções com Markus Dravs, que captou o grupo num estúdio na Jamaica.

O quarto álbum dos canadianos é um desses raros momentos em que deve ser ouvido muitas vezes, para se apreender por completo as diferentes camadas. É um disco de outros tempos, em que as bandas podiam arriscar, sem serem riscadas do mapa do mainstream. E é dessa forma que de facto a música consegue evoluir, quando as bandas mais populares arriscam, fazem e mostram e ao mesmo tempo conseguem aplausos de todos os quadrantes.

Vimos acontecer com os Beatles, disco após disco, mesmo quando editaram o disperso White Album. Ou quando os U2 responderam ao sucesso global de Joshua Tree com as canções mais experimentais de Achtung Baby. E talvez mesmo os Radiohead, que se esquivaram doutro Ok Computer com Kid A.

Este é um desses momentos. E festejemos, como se estivéssemos em pleno carnaval das Caraíbas. Celebremos, pois os Arcade Fire provaram que ambição e necessidade de arriscar ainda podem recompensar e muito quem está deste lado a ouvir, tanto num nível artístico como comercial.

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