DIÁRIOS DO UMBIGO

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Algures na embriaguez do sonho há um telefone que toca, abafado, ao longe. Abro um olho de cada vez e tento situar-me. Sim estou na minha casa. Não, não tenho ninguém a dormir ao meu lado, azar. Só a almofada que ritualmente atiro para o lado durante a incursão pelo reino dos sonhos.

Será provavelmente uma das cinco pessoas que tem o meu número de telefone, por isso no trajecto para a sala imagino uma ofensa personalizada e bem ordinária para cada uma das pessoas que me poderá estar a acordar às... que horas são? Onze e meia? Só?

Algures na sala o telefone continua a tocar. No meio da confusão lá o descubro e levanto o auscultador. Do outro lado não se ouve nada. Algo está errado. Ah, claro, esqueci-me de dizer "Olá", a forma mais comum que se usa por cá para realmente atender um telefone.

Era a Elsa. A Elsa é uma querida e por isso os meus impropérios não se verbalizaram. Deve ter boas razões para acordar um pobre escritor a uma hora destas. Ainda não totalmente acordado consigo perceber algumas palavras. E não gostei nada do que eu ouvi.

Precisam que eu faça a reportagem da inauguração de uma galeria de arte em Lisboa. E eu disse que sim.

Não consigo dizer que não à Elsa por isso fico duas horas a auto mutilar-me, perguntando-me como é que vou escrever sobre...uma galeria de arte? Eu tenho uma opinião sobre as galerias de arte.

O meu verdadeiro problema é com a cena artística. A pseudo intelectualidade, aquela classe de gente de tacão alto e óculo de enfeite que coloca gentilmente o punho debaixo do queixo exclamando um sonoro, "Hum..." Vocês sabem, aquela gente de classe média que não percebe nada de arte e que apenas vai pelos croquetes e champagne.

Há uns anos atrás, quando eu corria pelos corredores da António Arroio a implicar com as professoras, tempos difíceis, eu e o Carlos íamos a todas as inaugurações que encontrássemos. Bem camuflados no meio da elite de nariz empinado, surripiávamos croquetes, empadas e, no mínimo, uma garrafa de vinho para cada um. Sempre era melhor que cozinhar (e lavar a loiça) no minúsculo apartamento que partilhávamos com mais sessenta colegas.

Mas isso era na altura que havia dinheiro para inaugurações e para arte a sério. Hoje, uma folha de alface com uma cabeça de camarão em cima é gourmet.

Após um pequeno jantar que consistiu num meio copo de gin com água tónica sem gás (tenho que ir ao supermercado), visto-me apropriadamente para a ocasião, não é todos os dias que vou fazer uma reportagem. O meu método para estas situações, o qual partilho pela primeira vez publicamente, é simples mas requer alguma perspicácia: trata-se de escolher uma camisa que esteja lavada.

Rumo pela Escola Politécnica em direcção ao Bairro Alto e sem muito esforço descubro a galeria. Um colorido de gente cinzenta amontoa-se e uma música chata ecoa cá para fora. Devem ter DJ também, agora toda a gente passa música. Deve ser alguma estrangeirice, valha-me o Eça. A medo, dirijo-me para a entrada, tentando passar o mais despercebido possível. Mas não entrei.

Que se lixe esta inauguração, logo invento qualquer coisa e ninguém vai notar. Quem conta estórias sou eu, afinal.

Passo a galeria e desço o Bairro que ainda está vazio a esta quinta-feira. Conheço-lhe bem os cantos. Na Travessa das Mercês vomitei umas vezes, naquela rua que nunca me lembro do nome mas vai dar ao Mezcal tentei engatar algumas miúdas da pesada, e não estou autorizado em público a falar da esquina do Clube da Esquina. Bons tempos, tempos em que o fígado era invencível e a insónia uma boa amiga que nunca nos deixava ficar mal.

Mãos no bolso pela Bica abaixo e aterro na Rua da Moeda directo ao Lounge. Uma daquelas garrafas de Bombay tem o meu nome. Lá está o Júlio ao balcão a contar uma das suas peripécias, e a Catarina oferece-me o shot da praxe, aquele que cai sempre mal com tudo mas que não deixamos de o beber porque passar sem ele é como passar por um bom amigo na rua e não falar com ele.

Sento-me no sítio do costume e faço o ritual habitual, traçar uma linha directa até ao balcão e outra até à porta para o caso de ter que fugir rapidamente. Na cabine movimenta-se o Mário Valente que hoje apeteceu-lhe viajar pelos confins de África e dou por mim a imaginar-me num jipe a percorrer o parque da Gorongosa de panamá e calção, na companhia da....

Um copo pousa-se magicamente na minha mesa. Estes mimos de cliente habitual são agridoces, dou por mim a pensar-me como um velho e chato bêbado a caminho dos quarenta. Mas se calhar é isso mesmo que eu sou. E distraído, já que não a vi entrar.

Há qualquer coisa de mágico numa mulher que não usa mala de senhora, esse recipiente onde tudo se encontra e tudo se perde; juro que a única vez que tive que meter a mão numa dessas malas encontrei dois ou três corações partidos. A graciosidade desajeitada com que o cabelo é amarrado, cabelo tão encaracolado como a confusão dos meus sonhos, o delgado nariz de menina esperta, a boca sempre a ameaçar beicinho de miúda rebelde, e a dança.

Coloca-se logo na pista, atirando o casaco para perto de onde estou sentado. E dança. Quer lá saber se o DJ está a passar um funk psicadélico dos confins da galáxia, ela dança. E eu já estou a acabar o terceiro copo.

Sorri, nota que eu estou practicamente boquiaberto e dirige-se a mim. Engulo uma pedra de gelo e sofro um bocadinho.

"Estás ai sentado feito parvo, o melhor é dançares. Anda".

Pega-me na mão e não sei o que é pior, se o cubo de gelo na sua descida infernal cá dentro ou se o choque eléctrico da pequena mão que agarro com força.

Estou practicamente em cima do DJ, abrindo os braços na minha dança de galinha a caminho do tacho, mas não importa, ela sorri. E o meu sorriso responde-lhe, mas é um sorriso triste. Ela tira mais uma camada de roupa e eu puxo mais as mangas da camisa. Olha-me naquele beicinho de menina mimada, e eu derreto-me como um cubo de gelo.

Vou ao balcão buscar os refrescos, e quando volto ela desapareceu.

Ainda com os dois copos na mão consigo um vislumbre, qual assombração. Parada lá fora, All Star velho e a lutar com o fecho do casaco que descai, a doce e desajeitada menina que dança aguarda a minha decisão.

Largo os copos no balcão e saio atrás dela.

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