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Aurora: Desenhos e outros materiais, de Pedro A. H. Paixão

Percorre-se a exposição e fica-se com o lastro de uma sensação de fragmentos incompreensíveis de memória. O visitante é conduzido a uma busca permanente de respostas a perguntas que não cessam de eclodir e brotar, de modo ininterrupto, confundindo-o e baralhando-o.

No entanto, a sensação elanguescente de melancolia, e o jogo da memória que se adensa, juntamente com a ausência de pistas, parece acentuar-se e não deixar margem para dúvidas: uma onda de amargura, envolta em letal vazio, acompanhada por um sabor de passado doloroso, não abandona o local.

Um fragmento de polaroid regista um pequeno retrato, sobre uma estante, da bisavó do artista. Aurora Duarte de Castro, nascida no final do século XIX em Benguela-a-Velha, filha de mãe angolana, desconhecida, e pai português, morreu nova, com quatro filhos.

Um retrato próximo, a lápis de cor sobre papel, La lupara, 2020, parece fornecer mais algumas pistas. Uma mulher, sentada sobre uma poltrona branca, em verga, ao estilo colonial, descansa os braços sobre as asas do assento, que terminam em alados pormenores neoclassicistas. Sobre o seu colo, uma arma. No rosto sobrecarregado por um destino a que não pode fugir, ou, quiçá, a um passado recente que já fora consagrado, fixam-se os olhos, vidrados, na antecipação do acontecimento fatal.

Pedro H. Paixão dá corpo ao seu crescente interesse e estudo sobre a África Central e a pintura popular de intervenção política congolesa, por meio do desenho, do retrato e ainda outras formas de expressão e representação, como a fotografia, ou o som, através do uso de gravadores de fita magnética, aludindo a um tempo já irreparável de um ruído remoto. Estes vestígios encontram-se dispostos ao longo da exposição Aurora/Desenhos e outros materiais, patente na Galeria 111.

Paixão alude a uma burguesia angolana que ansiava, a meio do séc. XIX, por uma independência politica, cerceada pelo jugo português. O artista desperta, também, para o debate das questões de identidade e singularidade das nações, dos grupos e dos indivíduos.

Memória coletiva e esquecimento social, que dá lugar, pela resistência, ao sacrifício individual, emanavam já das preocupações e discussões realizadas por Bergson, por Nietzsche, entre outros.

Os totalitarismos ameaçavam uniformizar os cidadãos e votavam-nos a uma condição de intermitência, entre memória e esquecimento, pondo em causa o coletivo tradicional, e sacrificando o individual; o mesmo enfatizado com o autorretrato, a lápis de cor, Il petinto, 2018 que o artista apresenta na galeria. É nessa preocupação que parece assentar o trabalho na exposição de Pedro H Paixão. Que se distende numa preocupação entre o que é a homogeneização de uma sociedade, e a sobrevivência da sua memória; Paixão aparenta esforçar-se por manter vivo, por meio do som provindo da gravação os pequenos grilos que ecoam na sala, ou por meio das flores, o que é verdadeiramente originário de Angola.

Até 21 de março, na Galeria 111.

Carla Carbone nasceu em Lisboa, 1971. Estudou Desenho no Ar.co e Design de Equipamento na Faculdade de Belas Artes de Lisboa. Completou o Mestrado em Ensino das Artes Visuais. Escreve sobre Design desde 1999, primeiro no Semanário O Independente, depois em edições como o Anuário de Design, revista arq.a, DIF, Parq. Algumas participações em edições como a FRAME, Diário Digital, Wrongwrong, e na coleção de designers portugueses, editada pelo jornal Público. Colaborou com ilustrações para o Fanzine Flanzine e revista Gerador. (fotografia: Eurico Lino Vale)

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