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As várias camadas de Branca Cuvier

Há uma lista impressionante de talento à volta de Branca Cuvier. Da mãe, a pintora Joana Rosa, passando pela avó, a artista plástica Helena Almeida, Branca vem de uma família de mulheres artistas e homens arquitetos. Eles são a terra, elas o fogo e o ar. Branca é fruto de tudo isto, mas também é uma soma diferente destas partes.

Começou no desenho, mas foi na tridimensionalidade da joalharia que encontrou uma forma de expressão mais completa. Depois de ter criado a sua própria marca e de a ter levado ao limite – o seu, mais do que o da marca – volta agora às raízes. De raciocínio elástico, mas sempre lúcido, explicou-nos o processo interior que a levou da Baguera a ser simplesmente a Branca Cuvier.

A arte sempre foi um destino inevitável para a miúda que na escola se sentava no fundo da sala a fazer retratos encomendados pelos amigos. Era a extensão natural dos desenhos, das colagens e das bonecas de papel que sempre fez com a mãe. “Lá em casa, tudo era mãos e sentidos”, explica. Na altura de escolher um curso, foi naturalmente para desenho no Ar.Co. No final do primeiro ano, um dos professores, impressionado com uma experiência informal com pastéis de óleo, aconselhou-a a ir para pintura. Ingressou diretamente no 2º ano e durante algum tempo foi feliz no meio das telas e das tintas. “Tinha a parte do desenho, tinha a cor, estava ali a nascer qualquer coisa, mas ainda não era suficiente”. A frustração crescia a par e passo com a falta de estímulo para alguém que admite que sempre teve uma relação complicada com a escola.

O passo seguinte foi passar do 2D para o 3D. À terceira foi de vez e no curso de joalharia, também no Ar.Co, encontrou uma extensão do corpo e do cérebro.

Diz que sempre se pôs à mercê das situações, mesmo as mais duras ou desagradáveis, quando sentia que tinha algo a aprender com elas. Foi o que fez no final do curso quando achou que tinha que sair da sua zona de conforto e da estagnação que sentia em Lisboa. Ingressou na Gerrit Rietveld Academie em Amesterdão, onde esteve durante um ano. De seguida, fez um estágio de quatro meses no atelier de Lucy McRae, um período que considera essencial no seu crescimento artístico.

Depois de sintetizada a experiência holandesa – “aprendi a chegar a horas, a entregar os trabalhos a horas e a lidar com o não desenrasca” – estava na altura de voltar para Lisboa com a cabeça a fervilhar de ideias. Queria criar uma marca de joalharia, mas como não gostava de ouro e prata, esteve oito meses a explorar outro tipo de materiais. Em 2011, nasceu a Baguera.

Embora confesse que na altura era mais atormentada do que é hoje, afirma a convicção arraçada de escolha que norteou o projeto: “Posso fazer qualquer coisa criativa que não seja atormentada. O artista pode trabalhar normalmente oito horas por dia, não precisa de beber, de fumar, de sofrer, para produzir algo bom. Pode estar bem resolvido e ser artista”. E a Baguera era isso: um veículo para ideias mais simples e acessíveis, mas sem trair a expressão criativa de Branca. Pretendia ser um meio de subsistência que abria espaço para, em paralelo, desenvolver um outro tipo de trabalho mais complexo.

E durante cinco anos foi quase isso tudo. Mas na escola não nos ensinam que a logística de levar um projeto destes a bom porto nos pode engolir. “Tenho o maior orgulho e não mudava nada. Se eu quisesse fazer da marca a minha vida e não tivesse outro chamamento, a Baguera teria sido suficiente. Mas o que eu queria mesmo era outra coisa e ao fim de cinco anos eu já me sentia cinzenta por dentro”, explica.

Estava na altura de decidir o que queria fazer com a Baguera: fechar, vender? Apesar de muitas vozes de admiração, resolveu dá-la. Uma das suas melhores amigas e ex-colega do Ar.Co, Raquel Strecht, tinha acabado de se despedir da joalharia Leitão & Irmão e tudo lhe pareceu óbvio: era ela a pessoa certa para tomar conta da Baguera. Diz que não queria vender a marca, porque não sabia realmente o seu valor e, mesmo sabendo, a pessoa a quem a queria entregar não estava em posição de a comprar.

Durante seis meses ainda trabalharam juntas, pensando que esta nova fórmula a duas lhe desse o tempo que precisava para explorar outros projetos. Mas a verdade é que estava na altura de cortar todas as amarras e seguir em frente.

O que se seguiu foi um período de esgotamento físico e psicológico, com os cinco anos de espartilhamento a vir à tona. “O meu remédio foi ir ao psicólogo e rir muito. O Louis C.K. e a Amy Schumer curaram-me. Foi um voltar ao básico: comer bem, dormir bem, estar com a família. Estava a precisar de sentir as coisas de raiz, de estar quieta a observar e não ter pressa. Era um recomeço profissional e pessoal”, afirma.

Aos poucos, a energia voltou e com ela as ideias e o instinto que tinha deixado de sentir. Começou a compilar num dossier tudo o que lhe vinha à cabeça e escreveu novamente um manifesto para tentar reconectar-se com aquilo que era importante para si enquanto artista. Fez uma lista de coisas que a movem, lista essa que ainda está pendurada no atelier do Príncipe Real: mistério, segredos, sensualidade, sexualidade, fragilidade, religião, defeitos.

Mais do que preocupar-se com o suporte do trabalho que ia fazer a seguir, quis aceitar-se. No fundo, perdoar-se. “Acho que a pessoa tem que se perdoar para deixar acontecer, para não controlar e não ter medo”.

Leu, escreveu, andou muito, ouviu música, cozinhou (um dos seus grandes prazeres) e no espaço interior que isso criava, foi intuitivamente regressando às raízes: ao papel, às cores, às transparências, às camadas. Depois de combater uma “recaída” durante a qual voltou a controlar demasiado – “até já tinha o nome dos projetos sem estarem feitos, sem os ver” – há seis meses começou a produzir os desenhos que podem ser vistos no seu site e Instagram. Caras, corpos, manchas de cor que se sobrepõem a traços, criando uma espécie de camadas planas.

Começou logo a ter encomendas e tem vendido quase tudo via redes sociais. Apesar disso, este trabalho não é uma definição, não é a Branca Cuvier a partir daqui. É apenas o início de qualquer coisa. “Eu já sei o meu manifesto, já sei o que quero transmitir. Sei que estou muito interessada na relação do ser humano consigo próprio e com o outro, com a necessidade de conectar e o que isso implica, com o que acontece nesse espaço e no espaço interior. Quais são as emoções e os problemas associados a isso e como é que eu vou brincar com isso para me meter um bocado com as pessoas, para me exprimir, para existir, para trabalhar”, explica.

Dito isto, tudo está em aberto. O trabalho pode caminhar para o vídeo, para o som, não sabe. Certamente, irá sempre na direção contrária ao desejo de perfeição, outra das coisas que tentou deixar para trás. Por agora, sente que está novamente a regressar ao 3D. Em cima da mesa já tem estudos para trabalhos que abordam, mais uma vez, o seu fascínio pelas camadas. “Lembro-me sempre daquela frase do Shrek – ‘sabes, os ogres são como as cebolas, têm muitas camadas’. Se calhar sou um ogre”, diz entre risos.

Acima de tudo, é também esta capacidade de rir que não quer perder de vista.

Colaboradora da Umbigo desde 2000 e troca o passo, a relação tem sobrevivido a várias ausências e atrasos. É formada em Design de Moda, mas as imagens só (lhe) fazem sentido se forem cosidas com palavras. Faz produção para não enferrujar a faceta de control freak, dança como forma de respiração e vê filmes de terror para nunca perder de vista os seus demónios. Sempre que lhe pedem uma biografia, diz uns quantos palavrões e depois lembra-se deste poema do Al Berto, sem nunca ter a certeza se realmente o põe em prática ou se é um eterno objectivo de vida: "mas gosto da noite e do riso de cinzas. gosto do deserto, e do acaso da vida. gosto dos enganos, da sorte e dos encontros inesperados. pernoito quase sempre no lado sagrado do meu coração, ou onde o medo tem a precaridade doutro corpo"

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