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A Minha Avó é mais Bonita do que a Tua

O namoro entre a Umbigo (ou pelo menos o meu umbigo) e A Avó Veio Trabalhar já se arrasta há algum tempo, mas até aqui tem sido platónico. A apresentação da coleção Seven foi o pretexto ideal para finalmente nos conhecermos.

We are family

O caráter familiar d’A Avó Veio Trabalhar é imediatamente visível e sentido quando se chega ao nr 124 da Rua do Poço dos Negros. Júlia, a cadela de três meses de Ângelo Compota – fundador do projeto com Susana António – anda constantemente de colo em colo e ouvem-se cumprimentos nos quais se percebe um dia-a-dia partilhado: toda a gente se trata por tu e há referências a ontem e amanhã. Esta dinâmica não é exclusiva das avós que fazem parte do projeto. Estende-se também a todos os “netos”, amigos, voluntários e estagiários que por ali passam. “As pessoas vêm aprender um lavor, mas ao fim de três horas saem com uma avó”, diz Ângelo em relação aos workshops.

O facto de o atelier estar num R/C de portas abertas para a rua também facilita a proximidade. Todos os pontos de venda internacionais que têm, por exemplo, chegaram através de alguém que simplesmente ia a passar e entrou. Gostou do que viu e tinha uma loja (ou um amigo que tinha uma loja) onde aquelas peças faziam todo o sentido. Trocaram-se contactos e o resto é história.

Ângelo e Susana, um psicólogo e uma designer, começaram o projeto em 2014 numa das salas do centro de dia nas traseiras da Igreja de São Paulo. Tinham na mão o financiamento do BIP/ZIP (Grupo de Trabalho dos Bairros e Zonas de Intervenção Prioritária) e a vontade de se apropriarem de um local inusitado – uma galeria de arte foi uma das primeiras ideias. Bateram a várias portas que não se abriram por uma razão ou outra e foi o padre da freguesia que os ajudou. Foram recebidos pelos olhares desconfiados dos séniores e instalaram-se numa sala cheia de imagens religiosas, flores de plástico e um órgão. Ao fim de três meses, a frieza do espaço tinha sido transformada em conforto e os olhares desconfiados foram substituídos pela vontade de estar ali mesmo quando Ângelo e Susana estavam ausentes. De um grupo de 12 avós rapidamente passaram para 30. Hoje em dia, são cerca de 70.

“É um projeto de partilha de conhecimento e de aprendizagem, mas também de capacitação”, explica Ângelo. A cada nova coleção, começam por perceber o que cada avó sabe fazer – bordar, costurar, tricotar. A partir dai, Susana integra essas técnicas no desenvolvimento dos produtos, que são sempre uma ponte entre o passado e o presente. São objetos que nos fazem lembrar a casa das nossas avós, mas com cores e padrões que os integram na forma como vivemos hoje em dia. É um trabalho em conjunto, na maior parte das vezes inspirado pela história de vida das avós. A coleção Seven, por exemplo, apresenta-nos um conjunto de alfineteiras baseadas nos amores e nos ódios de estimação de cada avó. São em forma de bonecas de corpo inteiro ou só cabeças, e animais que parecem de La Fontaine. Cada uma tem uma etiqueta com a fotografia da avó que a fez e só nos podemos deliciar a imaginar que paixões ou frustrações exorcizou ao espetar ali alfinetes.

As avós contribuem com o seu conhecimento, mas também aprendem coisas novas em troca. Ângelo e Susana trazem pessoas de fora para ensinar a fazer serigrafia ou coser à máquina. Hoje em dia, são as avós veteranas que passam o conhecimento adquirido a quem entra de novo.

A ideia de tirar estas senhoras (e um senhor, o Domingos, o único avô do grupo) da sua zona de conforto é transversal ao projeto. A ideia inicial de ocupar um lugar inusitado como atelier passou para os workshops, que decorrem frequentemente em locais novos da cidade, sítios onde as avós não iriam normalmente e muitas vezes não sabem que existem. Para elas, a Pensão Amor ainda era associada a um bordel. Depois de se terem apropriado do espaço para um workshop e perceberem que havia ali vida nova, reza a lenda que algumas das avós já lá foram sozinhas, sem ser a trabalho. “Nós somos a ponte empática com estes novos comerciantes dos bairros, combatemos indiretamente a gentrificação que elas estão a viver e a perda de rede de vizinhança”, explica Ângelo.

Dentro da mesma lógica surge a parceria com o Arraial Pride, no qual participam desde 2015. Este ano, para além de confecionarem bolachas em forma de genitais femininos e masculinos, as avós também participaram na marcha. Em fato de banho. “Foi mágico chegarem ao final e serem aplaudidas, perceberem que há todo um mundo de descoberta e que podem fazer parte do que se passa na sociedade atual”.

Mas este caminho tem dois sentidos. Passa também por expor as novas gerações a pessoas mais velhas, fazendo-os perceber que há vida útil depois dos 40 e muito a aprender com estes seniores. O Follow the Granny, projecto extensível d’Avó Veio Trabalhar, é um bom exemplo: 45 idosos, residentes em vários bairros históricos, abrem a porta de casa a turistas e contam a história da cidade através das estórias da sua vida. Mostram fotos de uma Lisboa desaparecida e levam os visitantes numa viagem no tempo. São os portadores de uma memória coletiva que serve para mapear o património imaterial da comunidade, antes que isso deixe de ser possível por falta de referências. Nem só de bordados vivem as avós

A sustentabilidade financeira do projeto resulta dos workshops e da venda dos produtos, mas também de uma vertente mais recente de prestação de serviços. Isto passa pela criação de produtos e eventos específicos para marcas ou pela parceria com o Airbnb, entre outras coisas. A Avó Veio Trabalhar aparece na plataforma numa nova secção dedicada ao turismo criativo. Os utilizadores do site podem marcar um workshop ao mesmo tempo que reservam um quarto ou uma casa em Lisboa.

Parte dos lucros são direcionados para a logística diária – renda, contas, compra de materiais – e a outra parte serve para colocar em prática uma série de ideias. Tudo no sentido de “devolver cada vez mais este projeto às avós”, perceber o que gostavam de fazer e alargar o seu espectro de experiências. Foi o que aconteceu quando levaram oito avós para a aldeia de Cem Soldos, durante oito meses, para trabalhar com a comunidade sénior local (numa parceria com o Festival Bons Sons) ou quando muitas delas entraram num avião pela primeira vez numa viagem para os Açores, onde participaram no MUA – Mostra Urbana de Artesanato.

O encanto d’A Avó Veio Trabalhar começa nos produtos, mas solidifica-se neste trabalho social. Num mundo ainda demasiado obcecado por uma eterna juventude, afasta-se com facilidade a ideia de que um dia todos vamos ser velhos. Mas, se tivermos sorte, a verdade é que vamos e, se tivermos ainda mais sorte, vamos ser como estas avós – uma prova viva e bonita de que a velhice pode ser muito mais do que estar em casa com a manta em cima dos joelhos a ver o programa do Goucha.

Colaboradora da Umbigo desde 2000 e troca o passo, a relação tem sobrevivido a várias ausências e atrasos. É formada em Design de Moda, mas as imagens só (lhe) fazem sentido se forem cosidas com palavras. Faz produção para não enferrujar a faceta de control freak, dança como forma de respiração e vê filmes de terror para nunca perder de vista os seus demónios. Sempre que lhe pedem uma biografia, diz uns quantos palavrões e depois lembra-se deste poema do Al Berto, sem nunca ter a certeza se realmente o põe em prática ou se é um eterno objectivo de vida: "mas gosto da noite e do riso de cinzas. gosto do deserto, e do acaso da vida. gosto dos enganos, da sorte e dos encontros inesperados. pernoito quase sempre no lado sagrado do meu coração, ou onde o medo tem a precaridade doutro corpo"

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